O TERÇO DA BOA NOITE

Quem lê os meus textos já conhecem as qualidades da minha mãe. Como eu já relatei ela morreu aso 93 anos, eu nunca contei nada sobre o dia de sua morte, mas neste momento eu sinto necessidade de relembrar este fato.

Quarta feira, mês de abril eu sempre almoçava com a Tonha é assim que os filhos a chamavam. Nesta quarta eu tive alguns problemas no ambulatório da Prefeitura, depois, precisei passar no Banco, e cheguei atrasado para o almoço.

Bati na porta, e foi ela mesmo que atendeu. Olhar carinhoso, amoroso, mas taciturno.

--- puxa filho, achei que não viesse mais, a comida já esfriou.

Minha mãe morava com o meu irmão, somente os dois em uma casa antiga e enorme, o Clóvis é que fazia a comida, ela, porém sempre exigia o tipo de prato a ser servido no dia. Portanto, ela sabia tudo o que eu gostava, e ele sempre fazia o que ela pedia.

--- perdão mãe, mas tive problemas no trabalho, não consegui chegar mais cedo.

--- eu sei que você é ocupado, mas eu fiquei esperando, com fome já comi.

Ela tinha um apetite voraz.

--- eu sei, peço perdão novamente, mas minha vida é agitada, a senhora sabe disso.

Ela caminhou em passos lentos até o fogão. A comida estava ainda nas panelas. O cheiro era muito agradável.

--- o aroma esta delicioso, mãe, qual é a mistura. - perguntei abrindo as panelas.

--- o de sempre filho, arroz, feijão com linguiça, e de mistura, fiz berinjela ao forno, eu sei que você adora.

Ela tinha razão.

Minha mãe era uma santa, franzina, raciocínio perfeito, ideias claras, dura na educação dos filhos, amorosa ao estremo, mas exigente.

Fiz o meu prato, e sentei-me a mesa, ela sentou em direção oposta.

--- como estão as coisas filho, ainda sozinho. - indagou.

Eu estava de boca cheia. Assinalei para que ela esperasse a resposta.

--- você come muito depressa, a vida tem que ser aproveitada nos mínimos detalhes, você é ansioso, quer fazer tudo de uma vez.

--- calma mãe vou responder uma coisa de cada vez, depois. - sorri.

Ela pegou uma laranja e começou a descascar com a faca, fiquei preocupado, ela podia se cortar, tinha boa visão, mas a idade poderia prejudicar. Parei de comer, peguei a faca e descasquei a laranja por inteiro, dei-lhe a laranja e a casca perfeita. Ela sorriu.

--- você conseguiu filho, tirou a casca inteirinha.

Sorri.

Foi só então que eu percebi que ela estava com o terço seguro em uma das mãos. Era o seu amuleto, a sua proteção divina, ficava sentada no sofá, e ali desde o amanhecer até a hora de dormir, ficava orando, agradecendo a Deus as bênçãos recebidas, e a proteção aos filhos vivos e aos já mortos.

Comi tudo, e repeti o prato.

Depois tomei o café, e fomos sentar no sofá, em frente à televisão, era ali que colocávamos nossas conversas em dia.

Ela contava os fatos, os telefonemas, as confusões, os atritos com a empregada, que se descuidava da limpeza.

Meu irmão, após o almoço deitava e ali ficava talvez ouvindo a nossa conversa.

--- filho. Você vai vir almoçar domingo comigo. - ela perguntou com olhar tristonho.

--- claro mãe, nunca deixo de vir, a não ser que eu esteja de plantão.

--- acho que não vai ter almoço.

--- por quê? - indaguei estranhando a afirmação.

---por nada. Apenas uma cisma, venha deixa eu lhe mostrar uma coisa. -levantamos, e ela dirigiu-se para o quarto.

Abriu o guarda-roupa. Ela tinha muitos vestidos, guardava roupas de muitos e muitos anos atrás.

--- esta vendo este vestido de flores?

--- é lindo mãe, é novo? - ela sorriu

--- não. Claro que não, deve ter mais de 30 anos.

Inacreditável, parecia que nunca tinha sido usado.

--- esta vendo este sapato?

--- sim, parece bastante confortável.

--- eu gosto muito deles.

--- que bom mãe, então um dia eu vou leva-la na casa da Preta, e a senhora coloca este vestido e este sapato.

--- vou não filho, eu não saio mais de casa.

--- um dia somente, a senhora vai gostar, tem muitas flores, muitas plantas. - insisti

--- estou cansada filho, acho que nem vou fazer o almoço domingo.

--- mãe, a senhora esta forte como uma rocha, acho que passa dos 100, muitos de nós vai antes. - brinquei.

Ela ficou séria.

--- não quero enterrar mais nenhum filho meu. -

Fiquei quieto, percebi que tinha ficado brava.

Já eram mais de 13 horas, eu precisava voltar ao trabalho.

--- mãe, eu preciso ir embora.

--- sempre correndo. - retrucou.

--- é a vida de médico, fui eu que escolhi. - ri, levantei-me, pedi a benção, beijei-a na face e fui em direção à porta. Ela levantou-se prontamente e acompanhou-me em meus passos.

O meu carro estava no estacionamento em frente. Ela ficou esperando eu sair, acenou um Adeus, mandou um beijo e eu parti.

23 HORAS DO MESMO DIA.

Eu cochilava sobre o notebook, apos escrever alguns textos, o celular tocou.

Demorei um pouco para atender, mas o fiz assim que os meus olhos se abriram totalmente.

--- alo.

--- Claiton, corre, corre aqui em casa, acho que a mãe morreu. – dizia a voz do meu irmão em prantos.

Sai como um louco, morávamos a pouca distancia, esbarrei o carro no portão na ansiedade de poder fazer alguma coisa.

Cheguei e meu irmão estava na porta. Corri para o quarto, e a encontrei deitada na cama, e como sempre fazia do lado oposto a cabeceira, com o corpinho em concha, o rosto acomodado no travesseiro, e o terço seguro firmemente nas mãos.

Percebi claramente que nada mais eu tinha a fazer, mas em um ímpeto de médico, ainda fiz os procedimentos indicados. Era tarde, ela estava morta, e Deus a levara dormindo, provavelmente orando em seus sonhos. Meus irmãos foram todos chegando afoitamente, entravam no quarto e choravam pela mulher milagrosa que estávamos perdendo.

Ela tinha ainda na mão a aliança de casada, joia ganha do meu pai, que nunca tirara, mesmo depois de separada. Tinha no pescoço uma corrente, que eu sabia que fora presente de outro irmão, Clair, que também já estava presente, retirei a corrente e entreguei ao presenteador dizendo.

--- tome, guarde como lembrança da nossa mãe.

A aliança deixei a intacta, esse era um desejo seu.

O terço hermeticamente guardado em suas mãos eu retirei, e disse a todos, este foi um presente meu, e o quero como lembrança. Pedi a Claudete, a irmã, que pegasse outro e coloquei em suas mãos.

--- precisamos providenciar o velório. – disse a Claudete. Continuando. ---- que roupa vai colocar.

Levantei-me e fui em direção ao guarda roupas. Eu já sabia o que ela queria.

Abri duas portas.

--- Claudete, o vestido é este. Os sapatos são esses. – todos me olharam atônitos.

--- como sabe?

--- ela me mostrou na hora do almoço e que ela mais gostava. – respondi com os olhos cheios de lagrimas.

O sepultamento foi feito no dia seguinte. O Terço eu guardo comigo, e desde então eu oro, sempre um Pai e Nosso e uma Ave Maria, segurando o Terço entre as mãos, pedindo a Deus que me de a mesma dádiva que ELE deu a minha mãe. Que eu também morra dormindo, depois de dar Boa noite a todos.

BOA NOITE.