Saudades do Filho

 

 

          I. O NASCIMENTO

 

          Esperança, uma cidadezinha no interior do Brasil. Há dezoito anos nasceu Severino. Nada mais, além dos seus três quilos e oitocentos gramas de pura saúde. Olhos bem abertos e de cabeça pelada. Recebera duas palmadas da Doutora Márcia e aplausos de toda uma equipe. “Lindo bebê, disse, enquanto limpava o menino e cortava o cordão umbilical. Que maravilha.” Emocionada. Tudo era fotografado e passava pelas lentes de uma das enfermeiras, a Magali. Uma velha amiga de família. Estava ali somente para registrar os melhores ângulos. Só pra ninguém ficar chorando.

 

          II. O PAI DE SEVERINO

 

          O seu pai Josué era simples no modo de agir – um jovem de vinte e dois anos – três anos mais novo que a sua esposa Catarina. Olhos embebidos de lágrimas. Não se continha. Acompanhava através de uma janela de vidro. Ele e a família assistiam cada passo do evento. Os murmurinhos dos corredores traziam a grande notícia da noite. “Nasceu um menino lindo! Um lindo bebê!” Catarina nem se mexia. Coitada! Talvez pelas dores do parto ou por ter ficado extasiada pelo sublime instante. Com tantas luzes e elogios em sua volta, restou-lhe ficar paralisada com a situação. Emoção?  Quem vai saber? Contudo, uma coisa era certa, as lágrimas indicavam que algo de muito especial acontecia naquele hospital. “Mãe, recomendou a Doutora! Está aqui o seu príncipe encantado”. O menino estava envolto por uma coberta macia de cor verde bem clarinha. “Dê-lhe o peito.” E Severino mamou até ficar em tons roxeados. Tudo era motivo de festa. Todos celebravam mais um nascimento na “Maternidade Futuro”. Severino desde então passou a ser chamado pelo codinome Severinin, em homenagem ao seu avô nordestino.

 

          III. RELACIONAMENTO

 

          No início tudo era mágico. O relacionamento fluía às mil maravilhas. Josué, um carioca esperto, com o passar do tempo a cidade maravilhosa lhe esperava a cada dia de confusões. Também, não era para menos, os seus parentes e amigos moravam distante da cidade de nascença. Os dias pungentes projetavam os seus pensamentos para distante. Catarina descompensava-se com as ameaças que fazia: “homem imprestável, vai embora e me deixa em paz. Infame! Não aguento mais essa situação.” O que ela não entendia era a verdade de que todas as coisas precisavam acontecer no momento mais propício. Quando queria um vestido, por exemplo, queria aquele vestido. Recomendava Josué – “mulher, sem nos planejarmos, não consigo dar conta de tantas responsabilidades”. Nada podia acontecer, porque os tempos vividos em nosso país eram mais difíceis e amargos.

 

          IV. DIA DE FUTEBOL

 

          Num dia de decisão no futebol, assistiam um dos grandes clássicos da região – o placar marcava Grêmio 0x2 Internacional – Severinin e o seu pai estavam vestidos com as camisas dos seus times favoritos. Embora perdendo para o arquirrival colorado, não paravam de torcer. A esposa (do contra) usava vermelho e branco. Preferia agir com as vozes da razão. Muitas palavras eram jogadas ao vento e impingia o mal para tudo e para todos. A emoção, coitada, nem passava por perto daquela barra de saia. Buscava acreditar que o mundo deveria girar único e exclusivamente para si. Pura falta de sensibilidade e egoísmo à flor da pele. Enfim o jogo congelou com aquele placar e com a disputa por desejos e vontades de Catarina.

 

          V. A SEPARAÇÃO

 

          Paralelo ao turbilhão de acontecimentos, o emprego de Josué proporcionava-lhe a realização de concursos de remoção (já estava com as cartas nas mangas). Uma verdadeira válvula de escape. Exclamou, “vou-me embora! Cansei de passar por situações!” Prontamente acabou por arrumar as malas (as suas malas já estavam quase prontas). Seguiu o seu caminho e parou em sua terra natal. O pai fez tudo o quanto era possível para levar o menino consigo. Ainda pôde ouvir: “um dia você vai se arrepender.” No entanto, do que valeria amar uma pedra? Aos quatro anos de vida, Severinin amargou a dor da separação dos seus pais. Sem calar, dizia repetidamente: “mãe, pai, a culpa foi minha.” Todos os dias era a mesma ladainha: “cadê o meu pai? Foi para o céu? Aonde ele foi?” Pura inocência. Por consequência, judicialmente a sua guarda de menor passou a ser da mãe.

 

          VI. MÃE E FILHO

 

          Ficaram desolados, Severinin e a sua mãe. Pouco a pouco as notícias se desencontravam e a cada dia era um dia de sorte para o simpático menino. A jornada da vida mal começava a dar os seus primeiros passos, rumo para um futuro totalmente desconhecido. A vida ia seguindo o seu percurso e a constituição familiar foi esfacelando-se aos poucos. Uma vez ou outra o menino escapava para a rua e lá passava o dia a perambular.  Quando era noitinha a mãe o chamava, “Severinin passe pra dentro. Já é noite. Moléstia! Seu pai foi embora e nos deixou sem caraminguás. Que infelicidade!” Era a mesma súplica diária. E complementava – “que miserê!” Com aquela infância sem lei, o coitadinho não compreendia muito bem o que se passava. Eram apenas as travessuras de uma criança. No entanto, não se fazia nada e Severinin seguia seco.

 

          VII. O PADRASTO

 

          Catarina resolveu que deveria apaixonar-se e “casou-se” com um homem de trejeitos esquisitos e de olhares profundos. O padrasto do menino. A vida é feita de escolhas e o amor às vezes é cego. Era uma criatura totalmente descompensada e não conseguia enxergar um palmo à frente do seu próprio nariz. Valdinho nunca conseguia se estabelecer na vida. Trabalhava naquilo que lhe garantia alguma gorjeta. Mal dava para o próprio sustento. Desconsertados, o casal não parava de brigar. Nada se podia fazer e ninguém da família tomava partido. Dizia Catarina: “em brigas de marido e mulher não se mete a colher”.  Enquanto isso, a sua mãe não passava mais que dois anos com o mesmo relacionamento. A instabilidade de convivência familiar em sua vida era iminente. Mesmo com a pecúnia deixada para o sustento de Severinin, não era o suficiente para se manter. Quiçá o menino? Os avós comentavam, “esse dinheiro é igual a pés de cobra – ninguém vê”.

 

          VIII. A INFÂNCIA NO CAMPO

 

          Devido às más condições do casal, em todos os aspectos, a mãe resolveu levar Severinin para uma casa de sítio, distante de Esperança - que já era interiorana – na condição de morar com os avós. Seu Jacinto era um homem durão e mais grosso que papel de embrulhar pregos. Não tinha um senso agradável de pai (certo de que ninguém substitui um pai) e que, mesmo assim conquistou o netinho. Dona Margarida era uma mulher de meia idade, pele morena e de caráter bem forte, mas com um coração grandão (toda avó tem um coração do tamanho de um trem), conquistava o menino com os seus mimos. Mimos à parte, a infância de Severinin foi marcada por dias de muito trabalho no campo. Não chegou a abandonar os estudos, por recomendação dos seus avós e das aspirações do seu pai. Sempre havia alguém que dizia: “seu pai é um catedrático”.  Josué era apaixonado pela escola e havia conquistado alguns elogios com o feito. Assim, sem entender a verdadeira causa do rompimento dos laços de família, sentia muita falta do seu pai. A saudade era maior quando se comemorava na escola o Dia dos Pais. Lá, o curso do 1º grau funcionava de forma multisseriada e na mesma sala de aula cursavam-se várias séries. O pai de Severinin não aparecia e os presentes que os alunos confeccionavam eram levados para casa. Coisa simples construída com papel, cola, tinta guache e muita criatividade.

 

          Severinin, com ar de tristeza, perguntava para a professora: “tia, o meu pai vai chegar?” Olha filho, respondia a tia Zezé – “não te preocupas que um dia ele volta.” Desta forma acontecia com os outros dias mais importantes da folhinha: Natal, Ano Novo, Páscoa e Dia das Crianças. Mas, a culpa não poderia recair totalmente sobre as costas de Josué. Quando podia, ligava. Embora, na maioria das vezes, acontecia de não completar a ligação. As torres de transmissão de sinais para celulares eram precárias e os aparelhos pareciam com caixas de sapatos e possuíam antenas. Totalmente diferente dos celulares dos dias atuais. Desses que, para fazer uma ligação, basta deslizar os dedos sobre a tela e com um toque sutil fazer a chamada. Sem contar das facilidades que dispõem as operadoras de telefonia. Aos poucos, a imperiosa marcha do tempo ditava a formação da personalidade de Severinin. Por sinal, era muito forte. Todavia, a revolta com o seu pai tornou-se notável. Um verdadeiro coquetel de rancores.

 

          XIX. O REENCONTRO COM O PAI

 

          Aos doze anos de idade a vida de Severinin começava a se transformar de forma inexplicável. Momento em que o Seu Jacinto e Dona Margarida deixaram a lida do campo e foram morar em Esperança. O menino precisava respirar o ar da cidade. A permissividade era marca registrada da família. Bem-vindos, de volta à civilização. Chegaram com a cara e a coragem. O avô, quase um aposentado rural, entregou-se às bebidas. Dizia, “que tenho a perder – que levarei dessa vida, senão as amarguras?” Assim não conseguia parar de sorver a sua pinga.

 

          Na cidade, mesmo cambaio, continuou os seus estudos. Aos treze, reencontrou novamente o seu pai. Josué cheio de saudades foi visitar o seu rapaz, lá no meio do frio (um pai nunca se esquece do filho). Encontrou o menino numa situação muito difícil e com sintomas de angústia guardada no peito. De cara Severinin fez-lhe uma pergunta bem direta, “pai! Tu és o meu pai? Esperei muito por esse momento. Vieste me buscar?” O pai respondeu que sim. Envolto ao mistério, cercavam algumas condicionantes que percorriam os sentimentos. Não ia ser tão fácil resgatá-lo. Naquele momento, alguns fatores pesaram sobre a decisão. A mãe não poderia perder o rendimento que ganhava de forma tão fácil. A avó e o avô que cuidaram o tempo todo do neto, não queriam deixá-lo partir. E agora? Os sonhos de Severinin não passavam de poeira ao vento. A vida que era difícil poderia ficar melhor, do dia pra noite. As investidas do pai não obtiveram o sucesso desejado. Depois disso, nunca mais se ouviu falar de Josué.

 

          X. SAUDOSA INFÂNCIA

 

          Com o coração ferido e a desilusão do desafeto, fizeram do menino uma pessoa amarga. Por conta, sem limites de obediência. Ninguém conseguia segurá-lo. Sumia por três dias e aparecia sujo, desarrumado e com fome. Era um andarilho e metia-se em confusões. Pagou-se um alto preço. Os estudos pulverizaram-se e restou-lhe a falta de conclusão do Ensino Fundamental e de uma vida de futuro certo. Severinin partiu para o mundo e para os desafios da vida.

 

          As suas lembranças de molequices podiam vagar na memória: o cavalo “corisco”; o banho de chuva; e as contações de histórias de assombros à claridade do candeeiro. A luz elétrica, é claro, existia há muito tempo. Contudo, a precariedade de manutenção é quem dava as caras de vez em quando. O clima lá de fora era outro e os pirilampos com os seus lampejos, enfeitavam a atmosfera rica e saudável.

 

          XI. RUMO AO DESCONHECIDO

 

          Aos dezoito anos os sonhos de Severinin afundaram-se na lama da ignorância. A vida escapava por ente os dedos. Solto pelo mundo afora, definitivamente perdeu o contato com os seus pais, parente e amigos da velha infância.

 

          Severino seguiu o seu destino, em direção ao desconhecido. Sem tempo, no alento e sepultado por suas atitudes.

 

 

(Imagem: mundodasmensagens.com)