Em si mesmo

Naquela noite, todas as luzes do mundo apagaram-se, ou assim apenas pareceu o universo para Julia. Só os aquários da Praça Nereu Ramos tinham permissão para luzir. Os peixes voavam como nuvens num céu de água. De quando em quando, flagrava-se alguma trovoada silenciosa em suas escamas. Este carrossel de monstros doces era a fria confirmação de que o ser humano é o mais obscuro abismo já cavado na pele do mundo.

Caminhando pela praça, Julia deteve-se diante de um aquário triangular. Era como uma janela para um outono violeta, ou então o templo de uma pré-história violácea. Por entre setas fugazes, a moça vislumbrou um peixinho roxo, opaco e tímido. Lembrou-se que, em criança, ganhara um muito parecido. Numa manhã, Julia encontrara o peixe boiando de barriga para cima.

Por ocasião de sentimentalismo ou rádio ligado, uma música do Oswaldo Montenegro marcara a perda. Durante muito tempo, a canção não deixou cicatrizar a rachadura da promessa de que sim, papai, vou alimentá-lo todos os dias. Outros bichos e outras canções e outras lágrimas vieram; para fugir das recordações ressequidas, Julia escondia-se na treva das pálpebras e suspirava.

O maior aquário da praça era o universo de um único peixe. Julia sorriu ao imaginar que este animal fora tricotado vaidosamente com lã dourada pela natureza. Pestanejando de susto, a moça percebeu que este peixe era indiscutivelmente fêmea. Uma debutante em vestido amarelo, pesada com as rendas que a mãe lhe pendurou. Cata-vento de si mesmo, cata-água, translúcido, aurora de insônias, inquietamente uma mulher, tão pensamentos, tão humanidade, sim, tão humano e de uma incompreensão absurda, plenamente peixe, seguro de sua espécie e ao mesmo tempo maduro para assumir-se um papagaio ou uma sacola de pães. Se não fosse a maldita lei da gravidade que me prende a este chão, por deus, eu também seria feliz como este peixe amarelíssimo.

Difícil dizer por quanto tempo Julia permaneceu pensando. Durante três minutos, ela desejou escuramente que suas mãos fossem barbatanas; a hipnose maravilhada estendeu-se por três semanas e nos três anos seguintes, Julia foi várias Julias, não necessariamente humanas. Três décadas depois, Julia Mendes seria apenas uma ilustração azulada para a expressão ensimesmar-se, no dicionário.

Naquela noite, enquanto os peixes pisoteavam a dignidade dos humanos, Julia perdoava a matéria barrenta da qual tinha nascido. Perdoou também o frio cinzento, perdoou que suas barbatanas materializassem-se apenas nos sonhos, perdoou os dias chuvosos e as mentiras e as limitações. Sobretudo, perdoou que, hoje, seus olhos fossem cegos para o que não se vê.

Vanessa Bencz
Enviado por Vanessa Bencz em 28/02/2007
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