Mergulhando

Abriu o notebook e se espantou com a notícia que sua mãe lhe mandara para o seu e-mail, contando que seu irmão morrera repentinamente de uma hemorragia cerebral. Ele estivera trabalhando, consertando a casa e caíra repentinamente,desmaiando. Levaram-no ao hospital,mas não foi possível salvá-lo e o médico disse que ele morrera de uma hemorragia cerebral provocada por um aneurisma.

Respondeu que iria para casa no dia seguinte a fim de poder acompanhar o enterro. Fechou o computador e pensou no relacionamento difícil que sempre havia tido com o irmão, que sempre fora bom em tudo. Enquanto o irmão era bonito e naturalmente gracioso, ele era um rapaz comum e desajeitado. Crescera vendo o irmão ser paparicado pela mãe, com quem era muito parecido. Ah, como o irmão fora bonito. Bonito e desenvolto. Ia bem na escola sem precisar se matar de estudar. E ele, coitado, não era um rapaz bonito, era tímido, não era um superdotado. E os pais e conhecidos da família viviam a elogiá-lo, porque ele era o orgulho da família.Exibiam-no a todos os que os visitavam e ele ficava relegado a um canto, como se nem existisse. As visitas reparavam nos irmãos e comentavam, espantadas, que eles não pareciam irmãos gêmeos, sendo tão diferentes. O preferido era o bonito e ele, o grosseiro.

Sentindo-se rejeitado pelos pais e pelo mundo, ele se olhava no espelho e se odiava. Odiava sua cara grosseira e comum, seu porte grandalhão e deselegante e o fato de que não era um gênio na escola, como o irmão.Mas ele nada podia fazer. Não escolhera nascer daquela forma e não era intencionalmente que ofendia os pais por não ser como eles queriam. O irmão adorava provocá-lo, dizendo-lhe que ele tinha que estudar mais por ser burro, que nunca arrumaria namorada e não era bom em nada. Enquanto o irmão era bom na escola e no futebol, ele era um perna-de-pau incurável.

Dentro dele, cresceu um ódio desmedido pelos pais, por não entenderem que ele não tivera culpa de não ser o que eles haviam sonhado e pelo irmão, que percebia sua inveja e seu ciúme e o ofendia, dando agulhadas fundas na sua alma sensível.Para provar que podia ser bom em algo, esforçou-se nos estudos, mas os pais não lhe davam atenção. Então, descobriu a natação. Na água, ele era bom, melhor do que o irmão. E se sentia livre. Apenas ele e a água azul. Depois,aprendeu a mergulhar no mar e parou de tentar provar aos pais que poderia ser tão bom quanto o irmão. Passou a se afastar da família, descobriu um mundo onde ele não era o desajeitado, o feioso.

Pensando no irmão agora, no quarto da pousada, pensou no quanto ambos haviam se afastado. O irmão se formara em Engenharia e ele, em Oceanografia.Continuara solteiro e o irmão casara e tivera filhos.Olhou-se no espelho. Há muito, acostumara-se a sua cara desprovida de beleza.Tivera namoradas e vira que havia moças que não se importavam com beleza física, mas havia mergulhado fundo demais em suas dores, tornando-se um solitário. A rejeição que sofrera o fizera mergulhar num mundo onde se isolara.

Então, resolveu o que faria para se entender. Pegou seu traje de mergulho, indo mergulhar.Entrou no mar, vendo-se sozinho com os peixes e o azul profundo, meditando.Perguntava-se se conseguiria mergulhar fundo em si mesmo para compreender que sentimentos a morte do irmão lhe provocava. A dor estava lá, ele tinha que imergir nela, sem fugir.

Ao final, ao sair do mar, voltou para a pousada e, sozinho no quarto, olhou-se no espelho, percebendo que chorava. Não chorava copiosamente , como tantas vezes fizera quando criança, mas silenciosamente. As lágrimas permitiam que sua dor se libertasse. Ele mergulhara nela e, agora, via que estava livre. Livre do ódio, da inveja, do ciume e da necessidade de provar que era tão bom quanto o irmão.