A SAGA DE MARIQUINHA - Parte I (Os Canibais)

A SAGA MARIQUINHA - Parte I

¬¬_ Mãezinha... Mãezinha! Conta vó... aquela história de quando você era criança!

_Qual menino, qual? São tantas!

_Ah, Mãezinha! Eu quero aquela, que a senhora foi pelo meio do mato, pelas caatingas, com aquele montão de parentes, pelas estradas sem fim e pelas cidades. Mendigando até chegar à sonhada terra prometida a terra da esperança, como a senhora mesma dizia!

__ Você se lembra que eu já lhe falei que quando eu era pequenina assim que nem você, Eu fiquei órfã de pai e mãe. E quando ainda era muito pequena mesmo, mas já andava e ajudava em tudo, recebia obrigações de esmolar. Eu te disse que eu fui criada por minha irmã mais velha cujo nome era Maria e que eu a chamava de madrinha. Éramos bastante, contando com as crianças de colo passávamos de dezenove: Zezinho, Zuza, Sintô, Ananias, Veinho, Manelio, Cícero, Ramon, Marquenzinho, Aufrasio, Sazé, Lourenço, Jeoasim, eu Mariquinha, Dasdores, Josefina, Pelú, Tiota, Claudio e etc...

Vivíamos sem morada certa, como retirantes. Esmolávamos em povoados e cidades por onde passávamos, até conseguir um pouco de alimento que desse para suprir uma nova jornada. O sonho era mesmo chegar a uma cidadezinha chamada Belém de São Francisco a terra da esperança. Diziam que ali havia gente boa que não hostilizavam mendigos, uma região no baixo médio São Francisco na margem esquerda do rio.

A madrinha coitada era a responsável por todos e sua luta não era pequena. Por isso mesmo muitas vezes extravasava sua agonia nos mais próximos, com chicotadas, safanões, cintadas e pauladas nos mais teimosos e também nos mis lerdos como dizia que eu era. Não poucas vezes judiava muito de todos nós quando não conseguíamos boas esmolas, ou que julgasse insuficiente. Apanhávamos e ficávamos sem comida até adormecer no poeirento chão ouvindo o roncar do estômago. Certa feita bateu tanto na minha cabeça, com o bastão, chagou a sangrar e criar bicho.

Passamos juntos fome e frio, e nos acomodávamos aonde dava se no mato dividindo com aranhas, cobras e lagartos se na cidade entre gatos, ratos e lixos. Muita imundície. Às vezes, éramos expulsos de alguma proximidade de residências por alguns moradores.

À mercê das intempéries, o universo a abóbada celeste era o nosso lar. O azul do céu sem nuvens, as estrelas e a lua cheia muitas vezes nos arremetiam a sonhos de quimera, um teto, um lençol e uma cama. Alguns molambos cobriam nossos corpos encolhidos e amontoados. A música do estômago vazio muitas vezes soava como melodia de ninar. Assim viajávamos confortavelmente na utopia do espírito até que os raios do astro rei ardesse em nossa epiderme.

— Você esmolava sozinha, Mãezinha? Devia ser muito ruim, esmolar sozinha!

— Às vezes sim! A maioria das vezes não! O Meu parceiro de esmolar era meu sobrinho Jeoassim, filho de madrinha que tinha quase a mesma idade que eu. Jeoassim era muito bom e me protegia. Éramos ainda crianças, mesmo assim haviam aqueles homens ousados que tentaavm mexer com a gente. Jeossim me protegia das investidas desses ousados dizendo:

__ Se você mexer com a gente, com Quinha eu vou chamar meus tios e você vai ver.

__Às vezes quando pegávamos alguma esmola que dava para se comer na hora, ele dizia:

__ "Quinha, Quinha!" "Essa nós vamos comer aqui mesmo!" Nada de levar para a madrinha ela está muito morrinha, tá!

__ Fomos ensinados a valorizar as esmolas, pois sabíamos que as pessoas generosas doavam de coração. Agradecíamos a Deus e as utilizávamos sempre da melhor maneira possível sem desperdício. Jeoassim sabia que chegando às mãos da madrinha eu receberia o menor bocado. Por isso seu intuito era proteger-me.

Lembro-me certa feita estávamos lá pelas bandas da chapada diamantina em uma encosta. Muito longe, aproximadamente uns duzentos e cinqüenta ou trezentos quilômetros de Juazeiro da Bahia, na cidade chamada Jacobina. Cidade pequena mas que naquele tempo se destacava por uma febre quero dizer: uma espécie de corrida do ouro e pedras preciosas. Ali não cabia nem comportava retirantes, ciganos como nós, fomos hostilizados, sofremos e tivemos que bater retirada. Motivo pelo qual esmolamos pouco tempo e fomos obrigados a apressar saida dali sem suprimento suficiente para empreitada. Saímos quase que expulsos pelas circunstâncias, percorremos longos caminhos sem rumo, a escassez nos obrigava a andar cada vez menos e mais devagar. Os pequeninos eram forçados enfrentar longos percursos e ouvia-se cogitar, de se largar alguns para trás para a sobrevivência do grupo. As crianças se tornavam um fardo a ser conduzido.

A sêca de hum mil novecentos e trinta a mil novecentos e trinta e dois castigava o sertão e arrasava a populção. Num ato de desatino a madrinha que carregava uma criança ainda de colo, faltando água e comida assistiria o filho a morrer em seus braços. Pegou o pequeno Pêu caminhou até margem do riacho sem água, seco, achou uma rala sombra e o deixou o pequenino ali assentado e chorando o pequeno Pêu para ser devorado pela onça. O pequeno foi o motivo do ato de desatino daquela mãe sofredora mas que despertaria ato de heroísmo da jovem Dasdores uma das filhas mais velha e irmã do pequeno Pêu.

Naqueles tempos, havia movimento constitucionalista com regime de revoltas internas no país. Os revoltosos eram caçados e haviam confrontos entre forças regulares do governo e aqueles. Tínhamos muito medo, pois não entendíamos o que de fato se passava no país. Temíamos encontrar qualquer das partes, tanto as Volantes quanto os Revoltosos, ouvia-se dizer que e estes aqueles maltratavam as pessoas, fosse lá quem fosse, para obterem informações do outro e achando que eram enganados agiam assim, maltratando pobres camponeses ou andarilhos indefesos nos povoados ou caminhos por onde andavam.

A maioria de nossas jornadas eram realizadas à noite, aproveitando-se o frescor e seguíamos até onde as crianças agüentavam. Dormíamos sob copa de árvores. Naquele dia quando chegou a noite era não tão escura e ainda estávamos limpando no chão debaixo de um umbuzeiro , os cantos onde cada um iria dormir. De repente ouvimos o tropel, muitos cavaleiros armados até aos dentes,não sabiamos se era a Volante ou se eram os Revoltosos, o medo tomou conta de todos. Com os olhos arregalados como que para disfarçar o terrível medo continuaram limpando, com as vistas abaixadas aproximaram-se com desconfiança e observaram tudo e todos.

De repente um deles chega junto e fala:

__ "Quem é o chefe de vocês?"

Respondeu Maria, a madrinha, toda desengonçada, o cabelo estava uma arapuca e seus olhos pretos como duas quixabas maduras, estavam arregalados, demonstravam medo que se estampava nas bochechas tremulas ao falar.

__“Aqui é uma família numerosa de retirante, mendingos”! Meu marido Juca é o mais velho e está ali, apanhando lenha p'ra fazer um foguinho, Né. É para aquecer as crianças, e depois comermos! O Senhor quer que chame meu marido?

__Vocês por acaso são canibais! O que foi que senhora disse! Vão esquentar as crianças e depois comê-las?

__Não Senhor, não seu moço! Nossa Senhora nos defenda! Meu Padrinho Padre Cícero nos livre, Seu Moço!

Continua na Parte II...

NATINHO SILVA
Enviado por NATINHO SILVA em 09/11/2012
Reeditado em 10/11/2012
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