NO FIM

Todo o sofrimento dos últimos dias cessou ao mesmo tempo em que atravessaram pela janela as primeiras luzes do dia que principiava a raiar. Sentiu como se o corpo repentinamente tivesse sido tomado por uma anestesia inusitada brotada da própria dor. Até mesmo a fome implacável – há mais de uma semana a doença impedia-lhe de ingerir qualquer alimento – deixou de incomodá-lo. Um lampejo de ânimo fez-lhe pôr-se de pé, caminhar até o banheiro, despir-se e entrar debaixo do chuveiro, ao que, com a água morna e abundante jorrando sobre sua pele, teve uma prazerosa sensação de alívio. Apesar da higienização constante feita pelas enfermeiras, sentia a angustiante necessidade de um banho, desses que não se tem pressa de acabar.

Satisfeito, fechou o registro e, tomando uma toalha, enxugou demoradamente as partes de um corpo que era somente um espectro daquele outrora esbelto e viril. Os olhos fundos e os ossos saltados na face compuseram a imagem disforme que ele viu ao se defrontar com o espelho. Mas discerniu entre aqueles traços castigados a serenidade comum àqueles que já se resignaram com o próprio destino.

Havia um pijama dobrado no pé da cama, mas naquele momento ele estava abdicando de sua condição de enfermo. Puxando a porta do armário, encontrou uma troca de roupas, as roupas que havia insistentemente solicitado dias atrás. Algo já o antecipava que a hora derradeira chegaria em breve. E por toda a vida ele sempre se preocupou em estar devidamente trajado para as ocasiões que assim o exigiam. Vestiu também meias e sapatos, sentindo uma ligeira vertigem ao levantar-se depois de amarrar os cadarços com um duplo nó – mania que carregava desde a sua mais tenra infância.

Pensou então em como seria bom sair daquele quarto, cruzar o corredor margeado por aposentos que abrigavam dores semelhantes às suas, passar pela recepção e desejar bom dia a quem ali estivesse, abrir a porta e sentir o frescor da manhã transpassar-lhe as narinas, invadindo-lhe os pulmões entesados, oxigenando as veias, o sopro da vida novamente exalando por todos os poros do seu corpo. Mas tudo que fez foi dar dois passos para frente, virar-se e sentar na poltrona ao lado da cama desarrumada. Descansou os cotovelos nos braços e a cabeça no espaldar do assento, e suspirou. Dali vislumbrava pela janela o dia que vinha nascendo, e com ele os primeiros murmúrios do mundo que começava a acordar.

Seria possível, àquela altura, acreditar que aquele ânimo súbito lhe traria alguma sobrevida? Mas não queria uma mera sobrevida. Queria estar bem de novo, como estava alguns meses atrás. Queria ter a força que sempre tivera, o vigor para o trabalho nas obras, a marmita sempre cheia de comida, a sua franca disposição que nunca antes o havia abandonado. Queria poder novamente passar no bar do Aristides depois das seis e tomar uma cerveja com os amigos que lá estivessem. Depois chegar em casa, abraçar os filhos, beijar a esposa, perguntar como foi o seu dia. Queria, simplesmente, a sua vida de volta. Afinal, ainda tinha muito a fazer - mesmo que fosse aquilo que sempre havia feito.

Dentro em pouco entraria no quarto a enfermeira com a injeção de morfina. Dentro em pouco estaria envolvido novamente com a árdua batalha por mais um dia. Mas aquela manhã lhe trouxera um alento, um fio de esperança, uma vontade renovada pela cura e pela vida. Até há pouco agonizava, mas agora se via em condições de reverter todos os prognósticos negativos, todas as evidências contrárias, todo e qualquer sentimento de derrota.

Ao mesmo tempo em que se apoderou de tal convicção, um turvamento cobriu suas vistas, e uma sensação de dormência começou a subir-lhe pelas pernas.