BRIGA DE RUA

Eu tinha oito ou nove anos quando o conheci. Ele parecia um morcego gigante sem as asas. As orelhas pontudas tinham movimento próprio. As sobrancelhas grossas se emendavam sobre o olhar vivo e penetrante. A pele negra envolvia uma armação desconjuntada de ossos e músculos que se aprumavam atleticamente quando solicitados à ação. E ele sempre estava em ação, atento ao movimento das águas que desciam violentas dos morros, trazendo uma areia grossa que fazia a festa de muitos marmanjos e meninos. Mal passava a chuva, lá estava Carrinho Dezoito com sua pá afiada escavando o canal. Incansável, conseguia sempre fazer mais tuias de areia do que os outros. Em uma pausa para o descanso descobri a razão do seu nome: faltavam-lhe dois dedos do pé esquerdo. Automutilara-se ao recolher areia.

Cheguei ao grupo da areia também por interesses econômicos. Minha magreza e a sinusite pré-crônica não me permitiam disputar espaço no comércio arenoso. Os Colhedores de Areia, interessados apenas no produto da erosão, separavam as garrafas vazias, pedaços de osso, restos de alumínio que eu recolhia avidamente com meu carrinho de mão e ia vender no ferro-velho. Garantia dessa forma o dinheiro para o cinema e meus gibis. Em uma dessas investidas, o Morcegão flechou o olhar sobre mim e gritou:

─ Olha o Sibito Baleado!

─ Mas não sou aleijado! ─ Retruquei em cima da bucha. Ele recolheu as asas voltando à sua atividade normal.

Muitos anos depois eu compreenderia os motivos daquela atitude tão passiva. Mas naquela hora fiquei com o coração batendo forte, preso no chão, esperando ele jogar uma pá de areia sobre mim ou desconjuntar-me com um soco. Depois de alguns minutos vi seus lábios esboçarem um sorriso fino numa uma expressão de que não valia à pena bater em um esquelético.

Ele morava por ali mesmo, no Largo do Afonso, em um barraco de madeira, junto com seus pais e alguns irmãos menores. O largo era o centro comercial daquele bairro acomodado entre montes e córregos verdejantes. Ali se postavam os bancos de verdura, frutas, carne verde. Nos sábados pela manhã surgiam cordas de caranguejo, balaios apinhados de frangos e galinhas de capoeira, vendedores de peixe frito, tapioca, milho assado e cosido. Na frente do barraco o pai dele vendia vísceras de boi, mão de vaca e mocotó. O canal onde os Colhedores de Areia se reuniam passava por baixo da Barraca de Antônio Santa Cruz que foi comprada por uma tia minha. Na outra esquina ficava a Mercearia de Sebastião Nazário, um comerciante de fala rápida e bem humorado. Sem máquinas registradoras ou calculadoras, efetuava suas contas sem erro e numa rapidez espantosa. Sua propriedade se estendia até a beira do Rio Lava-tripas, cujas águas muitas mulheres vinham lavar roupa e tagarelar sobre a vida alheia. Do outro lado do rio a propriedade de Seu Ioiô dominava quase toda a vagem. Ele era um dos homens mais ricos da região. Seu filho Gilberto desfilava montado em belos cavalos. Sempre com um rebenque na mão costumava ameaçar os meninos e vez por outra se metia em brigas, sempre levando vantagem.

Até que um dia se deparou com o Morcegão.

Durante muito tempo, depois daquela briga sensacional, eu convivi com dois sentimentos antagônicos que quase me deixaram na loucura: o orgulho e o medo. Orgulho porque eu fora o pivô da confusão e medo de levar uma surra do perdedor. Tudo começou quando quase perdi três dedos da mão direita brincando com uma pequena faca de cozinha. Era uma manhã ensolarada e ao redor de minha casa eu dava voltas montado em meu cavalo (um cabo de vassoura) atrás dos índios que haviam raptado Ednete da Fazenda Ferraz. Depois de longa cavalgada parei debaixo do Ingazeiro para descansar e dar água para Silver. O chão úmido me fez pensar que havia água logo abaixo da fina camada de lodo que se formara no local onde minha mãe costumava lavar roupa. Sem pestanejar tirei a faca da cintura e cravei com força na terra. O chão resistiu ao golpe e minha mão deslizou sobre a lâmina. O médio, o anular e o mindinho foram atingidos. A terra sugou rapidamente o sangue Minha fez um curativo com mercúrio cromo e gaze. Mesmo com a mão enfaixada fui para a barraca que minha tia havia comprado. Um primo segundo meu foi encarregado de trabalhar naquela barraca Ele tinha vindo da Paraíba, ou melhor, do interior da Paraíba e me contava muitas coisas ruins que acontecera no campo quando do golpe militar de 1964. Ele vira muitos camponeses serem assassinado pelos soldados do Exército Brasileiro. Naquela manhã ele se atrasara e por uns instantes fiquei sozinho tomando conta do ponto comercial. De repente surgiu Maria Palavrada, a filha de dona Maria do Miúdo. Ela era a mais velha e tinha uns doze ou treze anos.

― Que foi isso na tua mão? Perguntou ela se debruçando no balcão. Os mamilos pareciam duas azeitonas negras.

― Cortei-me com uma faca de cozinha, Quase torei os dedos, respondi sem conseguir esconder minha excitação.

O braço dela escorregou como uma cobra e apertou-me a virilha. Surpreso, só tive tempo de fitar os olhos verdes dela e ouvir sua voz maliciosa.

― Espero de noite debaixo do cajueiro.

E saiu com seu andar de gata no cio. No mesmo instante Betinho surgiu na frente da barraca.

― Sibito Baleado! Eu ouvi a conversa. Que história é essa de sarrar com Maria Palavrada? Eu vou ao cajueiro no seu lugar.

― Mas ela falou comigo!

― Não interessa! Se engrossar vai apanhar!

Ele era bem mais forte do que eu, e tinha um rebenque nas mãos e uma fama de valentão, então lhe respondi:

―Você pode ir ao cajueiro no meu lugar, mas talvez se arrependa.

― O quê! Está me ameaçando. Saia daí de dentro. Vamos ver quem é que manda aqui!

― Não posso sair daqui agora, estou trabalhando.

― Tu tá é com medo, Usina de Catarro! (era outro apelido meu).

― Não tenho medo de você, mas não vou abandonar a barraca pra brigar.

― Vou pegar você aqui fora, pode esperar, disse ele se dirigindo para o lado do rio.

Fiquei matutando o que poderia fazer para dar uma lição àquele filho da puta. Além da ameaça, ainda queria tomar o meu lugar no sarro com Maria Palavrada. Eu tinha que fazer alguma coisa. Tive vontade de contar tudo para meu primo e ver o que ele poderia fazer para me ajudar, mas desisti ao pensar no pai do valentão. Era melhor tudo ficar entre meninos. Foi quando me lembrei do Morcegão. Eu não poderia vencer o filho do homem mais rico do lugar, mas Carrinho Dezoito era tão forte quanto ele e também era muito respeitado no Largo do Afonso. A questão era: como motivar o Morcegão para tomar as minhas dores? Eu o havia chamado de aleijado, na certa ele estaria com raiva de mim e até acharia bom se eu apanhasse. Mesmo assim um plano diabólico me veio à mente. Quando Fernando chegou pedi-lhe que fosse chamar Carrinho Dezoito. “Diga-lhe que tenho um recado de Maria Palavrada para ele”. Com menos de dois minutos o Apanhador de Areia estava na frente da barraca.

― Qual é o recado que Maria deixou pra mim? Perguntou ele me fuzilando com seu olhar raivoso.

― Ela disse que ia te esperar debaixo do cajueiro hoje à noite.

Eu sabia que ele era caído por Maria. Muitas vezes, quando ela passava com uma lata de água na cabeça, o biquinho do peito aparecendo sob a blusa molhada, eu via os olhos deles se arregalarem, ele passava a mão sobre a braguilha, lambia os beiços, tremia todo. Na verdade todos nós ficávamos excitados. Todo mundo imaginando coisas. A mãe dela também negociava com vísceras de bois e vez por outra ela aparecia na barraca do pai dele, ajudando a separar o material para a revenda.

― Ela disse isso mesmo? Tu tá inventado. Porque ela não me procurou?

― É sério cara. Ela veio comprar cachaça para o pai e acabou conversando. Não falou mais porque apareceu o filho de seu Ioiô dando em cima dela.

―Eu não acredito. Tu tá armando pra cima de mim. Quase todo dia ela vai à barraca do meu pai trocar dinheiro, se ela quisesse sarrar comigo dava um sinal.

― Por isso mesmo seu besta. Ela não quer dar bandeira aos velhos então deixou o recado.

― Olha, se eu for ao cajueiro e ela não aparecer nego vai me apanhar.

― Tudo bem, então vou provar que ela estará te esperando. Vou escrever um bilhete como se fosse tu e meu primo Fernando o levará. Veremos a sua resposta.

Peguei uma folha de papel e escrevi o bilhete. Assim que o terminei ele apertou-me o braço com força e disse:

― Pensa que sou otário? Não sei ler, mas tenho cabeça. Vou pedir pra outra pessoa ler pra mim.

―Tudo bem peça a seu Nazário, ele é gente boa. Mas não deixe outras pessoas ver o bilhete.

― Isso é comigo.

Cinco minutos depois ele chegou com um ar menos desconfiado.

― Ok! Pode mandar o bilhete.

Fernando tinha medo de me desapontar em consideração à minha tia, por isso levou o bilhete para Maria Palavrada sem pestanejar. Vinte minutos depois ele chegou com a resposta.

― Eu não quero nem ver o que ela respondeu. Peça para seu Nazário ler o bilhete dela.

Ele seguiu e eu fiquei com o coração na mão. Quando voltou estava excitado.

― Rapaz! É verdade! Veja o que ela escreveu:

Peguei o papel com a mão tremendo e li.

“Com dedo ou sem dedo, no cajueiro sem medo”.

Claro que ele não sabia que era uma resposta à minha pergunta: Mesmo sem dedos posso ir ao cajueiro? O plano vinha funcionando. Agora era deixar a água correr.

Na manhã seguinte os dois chegaram à frente da barraca ao mesmo tempo. Betinho, como sempre o mais afoito, foi logo ameaçando:

― Sibito Baleado, Usina de Catarro, magricela dos diabos, hoje você não me escapa, vai me apanhar!

Aquela reação me dizia que ele não se saíra bem no cajueiro. Prendendo o riso olhei para Carinho Dezoito que nos fitava com um olhar fulminante. Na minha mente as conjecturas sobre o que teria acontecido na noite anterior se alternavam seguidamente. Ora eu via Maria protegida pela escuridão do local esperando a minha presença e de repente surgindo Carrinho Dezoito segurando-a por trás. Ela logo percebera que não era eu e revelara a verdade. Nesse momento podia ter chegado o valentão e eu teria os dois enraivecidos comigo. Outra situação poderia ter ocorrido com Betinho chegando primeiro, Maria não ter aceitado as investidas, e o Morcegão irado por ter sido atrapalhado pelo valentão. Outra possibilidade era ter a garota ter percebido a presença dos dois e haver se mandado, deixando-os a ver navios.

― Que viesse fazer aqui? (imaginei o diálogo), perguntou Betinho.

― Vim me encontrar com Maria Palavrada. Ela disse que estava me esperando.

― Como? Se eu a ouvi marcando com o Magricelo.

― Não, foi comigo, ele me provou mandando um bilhete como se fosse eu e ela respondeu que estaria me esperando aqui. Acho que ela me deu um pito, aquela safada!

― Não sei como ele fez, mas quem deu um pito na gente foi aquele filho da puta do Sibito Baleado. Vamos pegá-lo.

Assim, cheio de dúvidas compreendi que só havia um meio de dar um fim a história.

― Você pode ser filho de seu Ioiô, pode ser brabo, o cão chupando manga, mas não pense que tenho medo. Vou sair agora. Vamos ver quem ganha!

Dizendo isso abri rapidamente a porta da barraca e encarei o valentão. Foi quando viram o curativo na minha mão. Temi que Carrinho percebesse naquela hora toda a verdade, compreendendo que os dedos aos quais Maria se referia eram os meus, mas logo ele se colocou entre eu e o valentão e disse com firmeza:

― Você não vai pegar certa, além de magricela ele está com a mão doente, venha dar em mim.

Aquela foi umas das mais sensacionais brigas de rua que assisti.

henrique ponttopidan
Enviado por henrique ponttopidan em 02/01/2013
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