Pra sempre

Pra sempre

Há mais de cinco anos ninguém lhe dava importância. Desde quando Assis Moura se aposentou e deixou a empresa nas mãos do filho e dos sobrinhos, Ernesto – o químico da tinturaria - ficou confinado à sala de ensaios do laboratório desativado da ala dois onde ninguém mais punha os pés, pois o prédio estava praticamente abandonado depois que construíram os novos galpões. Adelina foi a última das auxiliares a se aposentar, desde então Ernesto ficou sozinho em seu local de trabalho.

Tudo na vida dele era pra sempre, exceto a própria vida; o casamento, os colegas, o emprego, os amigos, a barbearia do seu Quirino onde cortava o cabelo, o botequim do Acácio onde almoçava e o fusca azul que estava com ele há mais de quarenta anos. Não se arriscava, sequer, comprar maçãs em outro fruteiro. Era organizado ao extremo, mantinha as fichas de receitas para tingir os tecidos em perfeita ordem, tudo escrito a mão com caligrafia impecável.

Por anos a fio criou cores maravilhosas e isso fez com que a tecelagem Moura se destacasse no mercado nacional e internacional. O velho Assis tinha por ele grande estima e não permitiu que ele se aposentasse. Ernesto continuava a revisar as receitas dos catálogos de cores mesmo sabendo que ninguém mais as utilizava desde que os novos chefes compraram “espectrofotômetros” e o “software data color”. Nos últimos quatro anos não lhe pediram uma só amostra, mesmo assim continuava a criar novas cores por conta própria.

O final do ano estava próximo, poucos dias antes do Natal uma notícia chegou aos ouvidos do novo presidente, uma das amostras enviadas a Milão foi reprovada, por isso todas as encomendas estavam suspensas, a coleção de tecidos tinha que estar completa sob pena de cancelamento de pedido, se isso acontecesse seria a ruína da tradicional fábrica.

O velho Assis Moura foi informado sobre a gravidade da situação, mas logo deu a solução ao filho; - Procurem o Ernesto, foi ele quem criou essa cor, e é o único que pode reproduzi-la.

Pela primeira vez em anos o próprio Assis Filho foi até a ala dois procurar por Ernesto. A porta da sala do velho químico estava fechada, ele tinha faltado ao serviço pela primeira vez em quase cinqüenta anos. Telefonaram para a casa dele, mas ninguém atendeu, era sexta feira e restava esperar que ele retornasse na segunda.

Para alívio de todos às sete da manhã de segunda ele estacionou o fusca 66 embaixo do majestoso chorão que ele mesmo havia plantado. Ninguém se preocupou em perguntar o que tinha ocorrido na sexta feira por ele ter faltado ao serviço pela primeira vez em quase cinqüenta anos. Dois diretores e cinco técnicos entraram no antigo laboratório trazendo um pedaço de tecido colorido, sentiram-se humilhados ao pedir que Ernesto reproduzisse a cor Forest Green que tentaram imitar sem sucesso. Animado o velho químico comprometeu-se a entregar uma amostra até as duas da tarde. Empenhou-se, nem mesmo foi almoçar e antes do prazo entregou ao próprio Assis Filho alguns metros de tecido tingidos com a cor Forest Green que ele havia inventado há mais de vinte anos. Ernesto estava feliz como não se sentia há anos, tinham precisado dele, sentiu-se vivo!

Na quinta feira uma boa notícia se espalhou pela fábrica, a amostra tinha sido aprovada, o pedido estava confirmado, não havia mais o risco de ruína da tecelagem. Ernesto estava ansioso, queria ir para casa e contar sua façanha, conduziu o fusca com todo cuidado pelo caminho ao qual estava acostumado. No semáforo da avenida encostou o carro e logo o vendedor de flores se aproximou trazendo o buquê de rosas.

- Boa noite seu Ernesto, as rosas subiram muito por causa do Natal, mas para o senhor o preço é o de sempre, freguês assíduo e antigo comigo tem privilégios. Tenha um bom Natal.

Ernesto pagou pelas flores e sentado ao volante virou-se para acomodar o buquê no banco traseiro. Toda sua alegria esvaiu-se em segundos ao ver que as rosas que havia comprado na semana anterior ainda estavam lá. O hábito havia feito com que ele se esquecesse momentaneamente que Alzira tinha morrido na quinta feira anterior e sepultada na sexta. Algumas lágrimas fizeram com que ele voltasse à realidade. Não havia mais a sua amada Alzira a esperar por ele no portão e receber flores. Quinta feira era dia de Alzira receber flores.

Na manhã seguinte seguiu triste para o trabalho, era o último dia de expediente antes das férias coletivas de final de ano. Caminhou lentamente pelo laboratório e olhou para o grande quadro com a fotografia tirada há mais de quarenta anos onde estavam reunidos todos os funcionários da tecelagem, alguns com uma cruz feita a lápis por um antigo porteiro, um costume macabro, quando ficava sabendo que algum ex-companheiro havia falecido, o porteiro fazia uma cruz sobre a foto do morto, até que um dia o velho porteiro também partiu pra sempre, mas Ernesto não fez uma cruz a lápis sinalizando a morte. Ao olhar para a fotografia Ernesto se lembrava de cada uma daquelas pessoas, alguns ainda estavam vivos, mas de todos os retratados apenas ele permanecia na fábrica, até mesmo Assis Moura, mais novo do que ele, havia pendurado as chuteiras e deixado tudo nas mãos do filho.

Naquele dia ligou várias vezes para o ramal da secretária do Assis Filho, em nenhuma delas conseguiu falar com o novo presidente da companhia. Na hora do almoço caminhou até o prédio central, entrou na ante-sala da presidência e foi atendido por Marilena – a secretária. Explicou que queria entregar pessoalmente ao presidente a receita para reproduzir a cor Forest Green. Ela tentou livrar-se do velho de toda maneira, mas ele insistiu e ela entrou no gabinete do presidente, voltou logo em seguida.

- Seu Ernesto, eu lamento, mas o doutor Assis Filho está ocupado confraternizando com os principais executivos da empresa, ele disse que depois das férias mandará um boy apanhar a receita com o senhor.

Ernesto nada falou, caminhou pelos pátios e corredores, observou tudo, parecia estar filmando a fábrica com a retina dos olhos, apanhou seus objetos pessoais, entrou no fusca e nem mesmo se despediu do porteiro. Não tomou o caminho de casa. Tal qual costumava fazer aos domingos seguiu para o parque da Aclimação. Trouxe do carro os ramalhetes de rosas, sentou-se no banco onde costumava ficar com Alzira, passou um bom tempo meditando, talvez pensando na sua amada que havia partido pra sempre.

Um vento repentino fez com que as flores de desmanchassem em pétalas que se perderam entre as árvores do jardim. Tirou do bolso do paletó o papel onde havia escrito a receita da Forest Green que tinha tentando entregar ao Assis Filho sem sucesso. Picou a receita em mil pedaços do tamanho de confetes irregulares, abriu a mão e deixou que o vento carregasse a receita pra sempre, como tudo em sua vida. Sorriu, entrou no fusca e partiu, não voltaria mais à fábrica. Deixaria o cotidiano de lado, era sexta feira, mas não tomaria sopa de lentilhas como sempre, resolveu comer pizza!

Laerte Russini
Enviado por Laerte Russini em 08/01/2013
Reeditado em 10/01/2013
Código do texto: T4073917
Classificação de conteúdo: seguro