ENQUANTO O SONO NÃO VEM = EC


Ramiro remexe-se na cama, sem sono.

Está cansado física e espiritualmente. Fez uma longa viagem, trem, avião, ônibus, um taxi para os últimos quilômetros até a velha casa no sítio onde viveu sua infância e da qual tinha triste recordação do dia que a deixou para sempre.

A cama ainda era a mesma que ele usara dos sete aos dezoito anos. O colchão de capim tinha um forro encardido onde pode ver ainda manchas deixadas por ele naquelas noites que a mãe dizia para os irmãos que tinha “chovido” na cama dele.

Era impressionante como tudo continuava do mesmo jeito, os móveis, as roupas de cama, tudo muito mais velho, é claro.

O pai não era pobre. Tinha até um bom patrimônio em terras e gado, mas não achava que valia a pena investir em conforto.

O espelho da penteadeira tinha um canto quebrado. Uma bola perdida... Lembrou-se da mãe zangada com ele, deixando-o sem sobremesa no jantar daquele dia.

Sentiu o cheirinho delicado do arroz doce coberto com canela que ele viu os outros comerem, com água na boca, mas lembrou também, com ternura, da mãe, mais tarde trazendo uma tigelinha do doce para ele fazendo-o prometer que “nunca mais” jogava bola dentro de casa.

Quando a irmã mais velha se casou com um rapaz da cidade, o pai não gostou muito. Preferia um homem do campo para continuar seu trabalho no sítio, mas não podia se opor, pois não tinha nada contra o moço e afinal a outra filha namorava o Tonico filho do seu vizinho, menino da roça, do jeito que ele gostava.

Mas aconteceu que o casalzinho da cidade acabou influenciando o Tonico que resolveu se debandar também para lá.

Um absurdo, na opinião do pai, deixar o que é seu para ir ser empregado dos outros, mas nada pode fazer para impedir.

Havia ainda os dois filhos.

Raimundo foi dispensado do serviço militar e ficou ao lado do pai trabalhando no sitio do jeito que ele queria, mas Ramiro foi convocado e teve que ir “servir o governo”.

Era só por um ano, mas o Ramiro gostou da vida militar e conseguiu ingressar nas forças armadas.

O pai ficou furioso. Não gostava de farda e queria o filho ao seu lado, no sitio.

A essas alturas já tinha adquirido boas glebas de terra que valiam um bom dinheiro, mas tinham que ser trabalhadas.

Ramiro bateu de frente com o pai e acabou saindo de casa brigado com ele.

— Se sair não volte nunca mais!

E ele não voltou mesmo.

Quase trinta anos de ausência e agora a noticia da morte do pai caiu como um raio sobre ele.

Estava no exterior e por mais que fizesse só conseguiu chegar no sitio dois dias depois do enterro.

A mãe o recebeu chorando. O irmão, friamente. No fundo devia estar achando que fora prejudicado ficando ao lado do pai, trabalhando duro e ajudando a adquirir um patrimônio que agora seria dos quatro irmãos.

Ramiro achava justo deixar tudo para ele, pois afinal trabalhara com o pai toda sua vida, cuidara dele quando adoeceu, acompanhara-o até o fim, mas sabia que suas irmãs não iam concordar com isso, os cunhados muito menos...

E a noite ia passando sem que Ramiro conseguisse conciliar o sono.

O galo cantou dentro da madrugada. O canto que ouvira durante toda sua infância e adolescência.

Era outro galo, é claro, Nada era agora como fora no passado, embora os móveis fossem os mesmos e o espelho quebrado continuasse ali.

Ramiro queria chorar e não conseguia. De que adiantava chorar?

840028.gifEste texto faz parte do Exercício Criativo - Enquanto o Sono Não Vem
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Maith
Enviado por Maith em 21/01/2013
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