Folha em branco

Um sujeito o qual não aguentava tantas ideias se acumulando na cabeça e que resolvera sentar na frente do computador, abrir o editor de textos e começar a escrever sem que os pensamentos parassem um instante, com os dedos velozes como os pés de uma corça, culminando em uma bela história que poderia contar pra esposa, filhos e netos. Uma história viva.

É, mas não era bem assim que acontecia. Jorge era um escritor por sonho. O problema era que sonhava demais. Desde pequeno sonhara em ser bombeiro, mecânico, piloto de motos, instrumentista, cantor, oceanógrafo, xadrista e por último escritor. E ele mal tinha chegado aos 21 anos. E apesar de tantos sonhos, e talvez por causa deles, não tinha se especializado em nada. Era um servidor público, que trabalhava seis horas, almoçava e jantava em 15 minutos, e o resto eram divididos entre o violão (as três músicas que tocava sem parecer estar machucando o instrumento), uma guampa de tereré e os jogos do computador. Mas agora ele queria porque queria escrever um romance.

Então, todos os dias cumpria o ritual. Chegava do trabalho, colocava a calça de moletom e suas pantufas e se sentava na frente do computador. Ligava o editor de textos, posicionava cuidadosamente suas mãos sobre o teclado para usar toda sua técnica de datilografia, que aprendera na máquina sem tinta de seu pai, e simplesmente olhava a tela. A página em branco não rendia muito. Começava com um jogo de palavras batidas como “Era uma vez” ou “Em uma floresta escura e encantada”, quase sempre selecionando todo o texto (a linha) e apagando no mesmo momento. Parava por ali. Ia fazer qualquer coisa que não pensar em escrever.

Aquele dia, porém, foi diferente. Chegou a casa, tirou os sapatos e lentamente colocou os pés no piso frio. Sentiu uma sensação relaxante indo por todo o corpo até chegar à cabeça. A sensação que teve foi de um absoluto vazio de pensamentos. Curtiu o momento. Tirou o uniforme e vestiu um calção. Pegou sua camisa mais surrada do Van Halen e a vestiu. Foi descalço até a cozinha, passando pelo escritório apenas para ligar o computador. Na cozinha abriu um saco novo de erva-mate, o cheiro (e o pó) da erva cobriram o ambiente. Fez o tereré em um copo de plástico e foi até o computador.

Chegando se sentou, encheu o copo de água e deu uma sugada. Só então lembrou que os pensamentos não haviam voltado a sua mente. Abriu o editor de textos enquanto sugava a primeira erva. O sabor forte era inebriante, e isso o fez lembrar-se de um arranjo do Led Zeppelin. Ligou o player e colocou “Baby i’m gonna leave you” da banda. Tai um medo que ele tinha no seu âmago, era ser abandonado. Não pela namorada, mas por todos. Tinha medo de ser esquecido, de se tornar um ninguém, de ser só mais um em meio à multidão.

E era isso que tinha que escrever, sentiu. Ia narrar a história de um herói, que não importasse a história, teria um medo. Todo herói tinha uma fraqueza, isso ele sabia, mas o que tinha descoberto era que pior que a fraqueza é o medo. Foi surgindo uma clareza que jamais imaginara, até um cachorro que ouve um estouro de bombinhas tem medo, mas a consciência do medo é o que nos torna humanos. É essa consciência que faz a pessoa que tem medo de escuro não se colocar em ambiente escuro, se não o fosse ela apenas se preocuparia após estar escuro.

Seu herói teria medo e seria consciente desse medo. Mas não conseguia pensar na ideia de escrever sobre um herói. Isso também o atrapalhava. Escrever sobre alguém que sofre, apanha e depois no último momento é salvo pelo amor, vontade ou qualquer outra coisa do gênero não era com ele. E não era com ele porque na vida não acontece assim. Ele quis ser cantor, cantava todos os dias e continuava cantando, mas nunca seria famoso, porque a maioria não é. Ele tinha desistido e o mundo era assim, para cada pessoa que consegue existem milhares que desistem do sonho de ser cantor. Ele não escreveria sobre um herói, ele escreveria sobre um cara comum que se ferra. Um cara que se acorda atrasado perde o ônibus para o serviço. A personagem faria besteiras e beberia porque gostaria de beber. Seria do tipo que não saberia analisar perfeitamente o que o outro estava pensando, nem saberia de tudo um pouco. Teria dificuldades em algumas matérias, xingaria se sentisse vontade. Não seria bonzinho com quem não merecia, ainda que sob sua visão deturpada. E o principal, não seria o primeiro em nada, não seria o vocalista descoberto no Quênia, nem um herdeiro milionário desconhecido que vai a São Paulo lutar por direitos ambientais.

Mas o seu anti-herói ainda precisava de uma história. Começaria com algo simples e cômico, pra já chamar atenção para o caos que era a vida do sujeito. Pensou em “Andando na rua tropeçou na única mulher que poderia realmente vir a amar na vida. Ela o xingou de filho-da-puta e nunca mais se viram na vida…” ou então “Aquele foi o dia de seu primeiro beijo, pena a meretriz ter cobrado mais 50 reais por isso”. Ria enquanto pensava e tomava o mate gelado.

Para Jorge não importava como seria o desenvolvimento. Normalmente essa era a parte fácil. Ele particularmente tinha três dificuldades em escrever, a primeira (e mais contundente) era começar. Isso explicava o número de páginas em branco que tinha visto se fechar sem uma letra digitada. O título era algo também complicado. É o que chama a atenção do leitor. Ninguém quer ler algo com o título “Prisão de ventre causa erupções anais”. Nem mesmo o médico especialista na área quer ler algo assim. E por final, e não menos difícil, era o final. O final é o que define se uma personagem foi bem construída ou não. Como seria o final do seu anti-herói? Ele se tornaria o principal ou continuaria entre o segundo e o penúltimo? Conseguiria o que queria? Teria paz? Jorge viu que na verdade não era o desenvolvimento fácil, o final o deixava assim. Se você decide que um corredor de maratonas vai ser o campeão da corrida na história, a história se desenvolve de modo a aparecem obstáculos que serão superados. Se ele vai ser derrotado, o desenvolvimento vai mostrar um valor que seja mais importante que a vitória. Era o final que ia dar à sua personagem algo único.

Já estava decidido, ia escrever sobre um homem comum, com problemas, que talvez os supere e talvez não. Que o mundo não pare por causa disso. Mas ainda faltava algo para Jorge. E ele sabia o que seria, uma surpresa, algo diferente. Ele seria conhecido por aquele final até o final dos tempos. Todos diriam: “eu não esperava que isso acontecesse”. E todos que não lessem iriam querer ter lido.

Colocou então o copo de lado, olhou atentamente para a tela e posicionou os dedos.

Rafael Fermiano
Enviado por Rafael Fermiano em 23/01/2013
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