Cinco reais

Achei que seria um dia como todos os outros. Saí do trabalho na maior correria. Tinha que chegar mais cedo para completar uma atividade da disciplina de Educação. Até tentei resolver na hora do almoço. Entretanto, esqueci as folhas de comando em casa. Não queria ir lá naquele dia. Seria a mesma coisa de sempre: meu marido saindo às escondidas a fim de beber cachaça e me deixando sozinha com meus filhos tão pequenos. Não podia arriscar ir em casa.Seria de novo faltar do trabalho no período da tarde,ligar para dar uma desculpa e faltar da escola... porque meu marido, por incrível que pareça , não me queria nem na escola,nem no trabalho. O dinheiro que eu ganhava,sustentava toda a família.

Entrei no ônibus. Para mim era normal chegar às pressas na parada, entrar no coletivo quase sem fôlego, agradecer ao motorista a gentileza de não ter me deixado para trás e dar um olá para o cobrador. Ele parecia já esperar que eu surgisse quase sempre com o ônibus tocando e eu correndo para alcançar. Gostava de sentar na poltrona próxima da porta de saída. Acho que é afobação.

Neste dia, minha melhor amiga de sala não estaria no ônibus. Tinha uma consulta no hospital de Base. É portadora de uma doença rara e de vez em quando ia para as consultas pré-marcadas. Jô não cogitava perdê-las nem em dia de provas, porque além de comprometer o tratamento, ainda seria desgastante remarcar para outro dia.

Gostei de fazer a viagem naquele finalzinho de tarde porque estava bem vazio. O motorista era bem louco e corria muito. Presenciei vários passageiros acenando com a mão para que parasse e ele fingia não ver. Coitados. Não tinham a mesma sorte que eu.

Eu só pensava na tal atividade. Estava bem mal naquele semestre. Faltei vários dias.

Ficava com vergonha de justificar as faltas junto aos professores. Como eu iria dizer que meu marido pegou todo o dinheiro do mês e que não tinha sobrado nem para os passes estudantis ou que me trancou dentro de casa só para não sair e ele se manter, lá fora, bebendo e jogando?

Não era fácil disfarçar. Eu fingia ser feliz o tempo todo, mas minha cabeça vivia a mil por não ter com quem deixar os meninos e ainda depender do Geraldo. Tão temperamental. Às vezes ele me fazia uns agrados - sempre depois de uma grande briga. Era um super jantar, uma casa bem arrumada, um presente simples. Tudo isso amansava o meu coração e eu pensava em um jeito de salvar a relação.

Chegamos à rodoviária. Estava morrendo de fome e não resisti ao cheiro de pastel. Seria bem rapidinho. Comprei um trio: dois pastéis e um caldo de cana. Estaria tudo bem se não fosse uma senhora me cutucando e pedindo um deles para comer. Fiquei um pouco irritada de ter que dar o único rango que comeria naquela noite. Dei. Acho que não foi por caridade, mas fiquei envergonhada de ter dois e negar um. Como ignorar aqueles olhos de pedinte , me interceptando, mudando meu caminho, me olhando na alma e na fala mansa quase uma ordem para que dividisse o que é meu? Seria impossível não repartir com ela. Se eu tivesse só um tenho certeza que teria negado.

Enquanto comia a metade do pastel, veio outro garoto de uns quase doze anos. ”Tia me paga um pastel?” Olhei para ele meio que ainda pensando na mulher que ainda estava ali perto. Só disse “Não tenho dinheiro” de um jeito bem ríspido pra encerrar logo a conversa. Era verdade. Eu só tinha cinco reais no bolso e três passes estudantis. Achei ruim ter dado o pastel para a mulher porque criança com fome é bem pior. E ele me reparava com aquele olho esquisito de gente que perdeu a dignidade, de gente pequena e sofrida. Até ia dar os cinco reais, mas e as cópias da atividade?

Saí dali quase fugindo com medo de ser abordada novamente. Nem vi se o menino ainda estava perto ou longe. Fui sem olhar para trás. A rodoviária estava cheia de gente assim. De todos os tamanhos, de todas as idades e jeitos. É inevitável. Meu percurso por ali fazia vê-los por bem ou por mal. Lembrei de meus pimpolhos tão pequenos em casa sofrendo pela minha ausência. Eu não tinha medo dele cuidar dos meninos porque raramente bebia enquanto estava com eles e aos meus filhos ele ainda dava carinhos e cuidava.

Subi as escadas para chegar à parada de outro ônibus que me conduziria até a Universidade. Assim que saí delas uma cena me chocou profundamente. Uma criança sozinha gritava pela mãe. Deveria ter uns três anos. Ela estava todinha suja. Provavelmente uns cinco dias sem banho. Esperneava no chão. Olhei para os pés da coitada e os vi sangrando, rachados, maltratados.

Logo à frente a mãe estava com outra criança no colo. Um bebê de poucos meses mamando no peito. Os três muito, muito sujos. Ela parecia estar longe de propósito do filho ou filha. Não sei até hoje. Nem cor sei também já que o preto de sujeira predominava nos corpos e nas vestimentas.A rodoviária sempre foi muito movimentada. As pessoas pareciam não se importar com o choro daquela criança e era tão, tão sofrido!!!Lembrei do meu choro nas noites de brigas com o Geraldo. O meu era silencioso, reprimido. O da criança era alto como se ela fosse uma criatura de Deus na terra clamando por justiça. Não consegui ignorar. Passei por ela a passos miúdos e indecisos. Não sou daquelas pessoas combativas e cheias de coragem que tomam decisões em público sem temer as conseqüências. Sou tímida e não gosto de chamar a atenção. Ele sim. Ele gosta. Em várias brigas gritou bem alto, bateu portas, quebrou objetos para todos os vizinhos escutarem. O pior mesmo eram os xingamentos de todos os nomes feios - alguns nem sei o que significavam e nem nunca ouvi da boca de outra pessoa ...e eu criada para nunca pronunciá-los ficava com vontade de entrar no jogo, mas me calava .Me fechava no quarto com os meninos até ter certeza que tinha saído ou dormido.

Aquela criança deveria ter a idade do meu filho mais novo e tinha os pés sangrando e muito cascudos. Lembrei das feridas de Jesus e quase chorei. Num gesto rápido e resolvido voltei para trás e fui até a mãe. Perguntei para ela “O que ela quer?” A senhora nem me olhou ficou observando o seu bebê mamando. Este bem gordinho. ”Leite”.

Meu Deus, eu pensei. Aposto que as esmolas que havia ganhado até aquele momento já dava para comprar um copo de leite e não dava para a criança por quê? Que mãe é esta que negava ao filho, fora do colo, um pouco de leite.

“É o leite comum?”

“É .”

Quase que maquinalmente coloquei a mão no bolso, peguei meus cinco reais e dei à mãe. Falei bem baixo “Por favor, dá o leite pra ele”.

Não olhei para trás para ver o desfecho da história. Entrei no ônibus comovida. Pensava na desigualdade do mundo, numa vontade louca de voltar lá e pedir aquela criança para mim, curar aquele pé maltratado e nunca mais a deixar chorar por estar com fome. Então de novo lembrei que eu não tinha tempo para meus filhos, tinha um marido problemático, ignorante e pior, mal conseguia pagar as contas.

Não fiz o exercício daquela disciplina. Me faltou o dinheiro paras cópias.

Marcela Cristiane
Enviado por Marcela Cristiane em 14/02/2013
Reeditado em 26/05/2021
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