MITO DA CAVERNA

 

 

 

Meu pai foi um herói para mim na infância, apesar de ser um homem rico, herdeiro de uma fortuna, esteve envolvido em movimentos sociais, nunca desperdiçou dinheiro, não viajou sem motivo, sempre tivemos uma vida tranquila, mas sem exageros, quando completei quatorze anos minha mãe saiu de casa com um arquiteto italiano, não suportou tanta retidão, tanta ética e moralidade do meu pai.

 

Haja preocupação com o meio ambiente, dizia ela, “que o meio ambiente fosse a puta que pariu, que eu quero é transar em Paris, e você tem dinheiro para isso, mas prefere gastar com os patos aleijados da patagônica, do que com o conforto da sua mulher", minha mãe gritava e nós escutávamos do quarto, Andressa colocava o travesseiro no ouvido e ficava dizendo:”burro, burro”, eu queria ouvir mais.

 

Meu pai não comprava uma joia, Eleonor, minha mãe, tinha que se virar para conseguir coisas simples como viajar, ou um vestido caro, meu pai nunca desperdiçava, ele falava.

 

-Casou comigo ou com meu dinheiro? - perguntava o meu pai, nos raros momentos que respondia.

 

-Agora, você me pergunta isso agora? Nunca vi a cor do seu dinheiro, só se eu fosse uma menina abandonada da África. - Àquelas discussões não tinham fim, nem começo, estouravam na sala, em qualquer lugar, até que um dia ela se foi, tanto eu como Andressa demos graças a Deus.

 

O divórcio veio e foi desgastante, meu pai formou-se em direito e sempre foi um advogado bem preparado, nunca deixaria que a esposa levasse o patrimônio dos filhos, minha mãe ficou com uma boa pensão, mas teve que desistir da guarda dos filhos, eu e minha irmã Andressa ficamos morando com meu pai e estudando em escola pública, eu não ligava, Andressa odiava.

 

Depois do divórcio a minha mãe sumiu, foi viver em Portugal, onde tínhamos um tio, seu namorado italiano gostava de Portugal.

 

Combativo, participante de movimentos ambientalistas, meu pai se envolveu com Maria Alice, que passou a frequentar a minha casa, Andressa, sem aguentar tudo aquilo e já formada em Jornalismo, foi morar em Paris com o namorado estilista de moda.

 

Fiquei para cuidar do meu pai ou ele para cuidar de mim. Um dia ele estava lendo a segunda parte da trilogia O sonâmbulo de Hermann Broch, uma obra que eu mesmo tinha comprado de aniversário para ele, a primeira tradução brasileira.

 

-Lucas – disse colocando o livro no colo – esse Hermann Broch é um gênio, temo que não se faça mais escritores como ele.

 

-As pessoas estão diferentes pai, ninguém liga mais para a literatura, televisão, internet e cinema, são os veículos culturais modernos, ler livros atrapalha a vida moderna é enfadonho e lento, as pessoas querem fazer duas ou três coisas ao mesmo tempo. Ler torna as pessoas muito racionais, pensantes demais, chatas, a vida moderna é uma volta ao período Homérico, corpo, força e vitória, com uma pequena diferença, a regra é outra, vale o “ custe o que custar vencerei”, sem essa história de ética e moral, honra, criada por Sócrates.

 

Ele ficou me olhando, colocou os óculos e disse: – Estou criando um mostro, quando você ficou tão inteligente? Não me diga que se tornou um cético?

 

-Realista, no sentido Hegel, tenho a minha própria realidade, não duvido muito dela, para manter a minha sanidade, acredito no que sinto e vejo, em nada mais, convivo e vivo, assim isso mantem a minha mente limpa – disse rindo e peguei um suco na geladeira, tinha provocado meu pai a uma discussão.

 

A interrupção na leitura está feita, não sei porque a vida do meu pai deu tão errada, os amigos gostavam dele, eu gostava dele, mas a mulher que escolheu para amar amava o seu dinheiro, um italiano de pênis gigante (que ela alardeava a todo canto). A filha que ele admirava achava o pai um burro da pré-história, um idiota cheio de ideias que não sabia curtir a vida, as coisas boas que fazia não apareciam, o dinheiro que doava virava pó em mãos erradas inescrupulosas, tudo isso misturado com uma dor interminável na coluna, que não deixava ele dormir.

 

-Quer dizer que a nova versão do mundo é melhor que a antiga? Olhe para esse mundo, destruição do planeta, corrupção, uma fogueira queimando, até um meteoro caiu na Rússia? Não tem um aparelho para detectar isso? O filme sobre assassinato do Bin Laden, tortura, isso existiu no passado? Talvez, mas ninguém que fazia tortura se intitulava o lado bom, estamos fazendo isso porque somos os bonzinhos, os mocinhos do filme. Fico parado vendo tudo arder no fogo da ganancia, esperando pela volta de Jesus Cristo? Tá bom, espera sentado, eu não meu querido, eu faço alguma coisa da minha vida que vai prestar, que vai ficar, minha vida tem que ter sentido, não um sentido religioso, mas um sentido, veja os políticos! Agora fazem história com corrupção e malandragem, olhe os políticos do passado, como queriam entrar para a história?

 

-Não vou discutir religião com você, sei que você lê aquele psicólogo evolucionista, Robert Wright, que tem uma explicação racional para o aparecimento de Deus de Israel, de como o monoteísmo surgiu, não vou entrar nessa discussão sabe o que eu penso sobre isso. - Disse tomando o suco e me divertindo com a provocação, eu não pensava nada sobre o assunto, não tenho idéia formada sobre isso. Se Deus existe ou não, sei lá, é como discutir matemática avançada aos cinco anos de idade, ou você se interessa ou não, não racionaliza, ou cai na estrada ou sai fora, ou é religioso ou não, religião na maioria das vezes também é um motivo para viver, um sentido para a vida.

 

-Deus? Um Deus que não funciona, deixa ele lá e eu cá – disse voltando a leitura, estranhamente aquela noite ele não 'ferveu' com o assunto, era sexta feira, aquilo tudo poderia acabar em cerveja. Que pena! Tomei o suco, dei um beijo no rosto dele e fui para cama, o toque me aproximava dele, mas ele fazia de conta que eu não estava ali, não retribuía, o carinho para o meu pai era uma coisa distante, sabia que me amava, mas não conseguia demonstrar.

 

-Vou comprar um sanduíche e andar – disse batendo a porta. Meu pai gostava de andar a noite, fazia sozinho, sem pressa, olhei os escritos dele sobre o "Mito da Caverna", alguma coisa que perseguia com paixão: o sentido contemporâneo para as palavras de Platão, que divide o mundo em duas realidades: a sensível, que se percebe pelos sentidos e a inteligível ( o mundo das ideias). O primeiro é o mundo da imperfeição e o segundo encontraria toda a verdade possível para o homem. Assim o ser humano deveria procurar o mundo da verdade para que consiga atingir o bem maior para sua vida. Em nossos dias, muitas são as cavernas em que nos envolvemos e pensamos ser a realidade absoluta.

 

-Bonito isso pai. – Falei alto um pensamento, sorri e vi o quanto amava o meu pai, acho que amava mais por ele ser daquele jeito.

 

Duas da madrugada, dois policiais bateram a minha porta, eu tinha apenas dezoito anos na epoca, disseram que meu pai sofreu um assalto, tinha levado um tiro na cabeça, estava em estado critico no hospital, perguntaram se havia outro adulto.

 

-Não, estou nessa sozinho – disse com lágrimas nos olhos, peguei uma camisa e fui ao hospital.

 

Hospital tem cheiro ruim, gosto ruim, nada que vem de lá me lembra coisa boa, a morte dos meus avós, agora o meu pai deitado em um leito de UTI, o neurocirurgião disse que ele teve sorte! Porra, médico é foda, como alguém pode ter sorte depois que leva um tiro na cabeça? Os médicos usam o eufemismo da forma que querem, quando querem.

 

A terceira semana foi a pior, comecei a faltar a faculdade, minha mãe disse que não poderia vir e Andressa falou que o namorado tinha contraído gripe aviária e estava cuidando dele, assim que pudesse dava um “ pulo' no Brasil para ver o pai, que ele estava bem comigo cuidando dele, sempre esteve.

 

Sozinho, lia os livros para ele, passei quase quatro meses dormindo no hospital vendo o meu pai sem ação, achando que estava morto, em um dia que me atrasei, o neurocirurgião me esperava na porta.

 

-Ele morreu? - perguntei aflito.

 

-Ao contrário, ele acordou e está ótimo, mistérios da ciência, claro que ainda tem dores de cabeça, ficou com o lado direito paralisado momentaneamente, eu acho, creio que a fisioterapia dará jeito, meus parabéns rapaz, seu pai é um guerreiro, ele está de volta.

 

-Quem é essa pessoa que está do lado dele? - perguntei ao ver um senhor vestido de jaqueta e com cabelos grisalhos.

 

-É um padre, ele que pediu.

 

Quando cheguei ali no quarto, senti que não era ele, ou pelo menos, nem sombra do olhar direto, incisivo e inteligente do meu pai, Maria Alice estava do lado dele e o Padre tinha acabado de sair, segurava a sua mão magra, comida pelos dias doentes.

 

José Antônio, meu pai, alegre e sorridente, após voltar da morte, começou a falar após vinte dias, perguntava sobre Andressa e minha mãe, fazia pouco da presença de Maria Alice, aquilo já estava me incomodando.

 

-Quem ela pensa que é? - ele me perguntou em voz baixa.

 

-Sua namorada.

 

-Não vou desafiar os mandamentos de Deus, quero ela fora daqui, sou um homem casado, prezo os valores de Deus e da igreja,quero retomar a minha vida, do ponto onde joguei ela fora.

 

-Você está de brincadeira né pai – disse olhando para os olhos grandes e feliz dele recuperando os movimentos e a face gorducha que aprendi a amar.

 

-Lucas, eu estive lá do outro lado, conheci o outro lado, sei que Deus existe, que Cristo é o nosso salvador. Eu sei que você vai dizer que antes eu era um ateu, agora quero mudar, o que me aconteceu foi maravilhoso, quero recuperar a minha família, os negócios – ele segurou a minha mão. – Lucas, eu destruí um patrimônio de vinte milhões de dólares, fiz minha família sofrer porque tinha ideias sobre o mundo, que para falar a verdade, ninguém acredita, ninguém quer ouvir. Agora eu sei, o que Deus dá é para a gente usufruir com a família, perdi a minha família, pois buscava um ideal bobo e inalcançável, agora quero a minha família de volta, jogue os livros fora, arrume a casa, assim que melhorar vou salvar o resto de patrimônio que tenho e salvar a minha família, minha indústria, o patrimônio que foi meu pai que construiu.

 

Escutei calado, não sabia o que pensar, em parte estava certo, mas por que eu não estava feliz? Quem era aquele pai que voltou do coma, o que ele tinha para falar para as pessoas da Caverna?

 

Maria Alice estava na cantina do hospital, esta foi a última vez que a vi, uma mulher extraordinária, socióloga, engajada em movimentos sociais e ecológicos era uma espécie de versão feminina do meu pai, porém, seus olhos verdes e a bela face pálida estavam tristes.

 

-Quem é o homem que voltou do coma? -ela disse me entregando um café.

 

-Acho que isso deve passar com o tempo, sei que ele está esquisito, mas é meu velho pai, você é a namorada mais linda que ele já teve – disse, mas não tinha certeza das minhas palavras.

 

-Um capitalista católico fervoroso, que quer o dinheiro de volta da ONG protetora dos animais – disse com ênfase em capitalista, visivelmente transtornada, ainda assim parecia uma jovem menina, bonita, uma cura para o meu pai, que ele nunca conseguiu amar, apenas admirava, ela encostou a mão dela em mim e disse – cuida dele Lucas, há coisas piores que a morte.

 

A vida retornou ao normal, se é que posso chamar aquilo de normal, meu pai, mesmo debilitado organizou uma reunião com os diretores da empresa, demitiu todos, não ficou um só, muitos choraram, outros imploraram pelo emprego, o argumento do meu pai é que a diretoria estava levando a empresa para o buraco e todos eram ateus, alguns deles confessaram que não eram ateus e que só mentiram porque a outra versão do meu pai gostava assim. Não adiantou, todos foram demitidos.

 

A nova diretoria era formado por jovens executivos com MBE no exterior, alguns eram amigos de Andressa, que voltou do exterior direto para uma das diretorias, a minha mãe também passou a ter um cargo na empresa, gostava muito da versão nova do meu pai, mas gostava mais ainda do seu namorado italiano, então ficou com ele, coisa que a versão nova do meu pai entendeu e a versão antiga nunca entenderia, enquanto a versão nova tinha um único Deus a versão velha tinha um único amor.

 

Eu queria terminar a faculdade, meu pai acompanhava de perto, mas não estava gostando do resultado.

 

-Estudar Filosofia para quê? - dizia ele – ninguém mais está atento a isso, existe algum pensador moderno respeitado? Que não seja economista? Todos querem saber quanto vão ganhar, o que pode compartilhar com Deus e seus irmãos de igreja, você estuda Filosofia porque não precisa ganhar o pão, fica lendo bobeira, o homem não sabe nada, confie em Deus e faça o seu trabalho aqui na terra que é viver feliz, máxima riqueza, que Deus dá inteligência é para isso, e criar filho.

 

O fato é que meu interesse por filosofia caiu, ficava o tempo todo a toa como um vagabundo, não lia o noticiário nem me interessava por ele, meu pai me enchia de concelhos, passei a frequentar a igreja, tudo estava nebuloso, minhas ideias não entravam, o que teria acontecido, fui até um neurologista, Dr. Salgado.

 

-Não é que a minha vida está ruim – disse depois que ele me examinou – tenho tudo, não me interesso nem por filosofia, nem por psicologia mais, estou começando a me interessar pela indústria do meu pai, agora que tenho vinte e cinco anos, o senhor acha errado?

 

-Acho que você está amadurecendo, é só – disse colocando o estetoscópio no ombro – seu pai precisou de um tiro na cabeça para amadurecer, olha que o conheço desde criança, você não.

 

O livro estava caído, Hermann Broch, Sonâmbulos, joguei no lixo, de alguma forma a vida tinha mudado, tinha que seguir o curso, mas será que foi o tiro que o mudou, todos mudamos, eu mudei?

 

Meu pai estava parado na porta, seus braços estavam cruzados, foi até o lixo e pegou o livro, colocou na estante.

 

-Por que você colocou o livro de volta? - perguntei meio no descompasso entre o que pensava e o que meu pai estava fazendo, aquilo foi um choque, afinal ele havia queimado os outros livros.

 

-Estou lendo, esse livro não merece o lixo.

 

-Desde quando? Tem dias que só pega as revistas de negócio, jornal lê apenas a parte econômica.

 

-Uns dois dias atrás, senti vontade, o livro é bom.

 

Sorri, nem sei por que, mas sorri.

 

-Pai, e aquela dor na coluna?

 

-Agora que você falou, tenho sentido uma dor ultimamente, já sentia antes?

 

Isso pai, não escolha o fundo da caverna, sai daí, pensei, de certa forma estava alegre, queria ele de volta e ele estava voltando.

 

 

JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 15/02/2013
Reeditado em 09/09/2013
Código do texto: T4141811
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