E prometo-lhe ser fiel

Desde criança sempre ouvi falar do meu tio Júlio, o único irmão homem de meu pai, mas nunca cheguei a conhecê-lo pessoalmente. Eu ficava rodeando os sofás sempre de ouvido nas conversas relacionadas com ele. Talvez pelo fato de me ser tão familiar mesmo sem nunca tê-lo visto, ou porque invariavelmente falavam mal dele, era alguém que instigava minha curiosidade. Mas tal figura jamais era o assunto da conversa na presença de meu pai, que simplesmente o detestava. O motivo eu fui entender depois, bem mais crescido.

Quando ocorreu a partilha dos bens em virtude do falecimento do meu avô, coube aos filhos homens o sítio onde morávamos. Mas meu tio, na ânsia de comprar terras no Paraná para o cultivo do café, praticamente obrigou meu pai a venderem a propriedade por um preço muito abaixo do que ela realmente valia. Então a relação entre os dois ficou abalada, e foi rompida definitivamente quando meu pai descobriu que aquela mudança inesperada não foi motivada pela abençoada terra vermelha do sul, mas por conta de um rabo de saia.

Acontece que na época um sitiante vizinho chamado Simão Tenório tinha se mudado para o Paraná levando mulher e filhos, entre eles a Leocádia, uma moça fingida a santa mas que era um assanhamento só quando estava perto de um macho. E tio Júlio, mulherengo por natureza, tinha se envolvido com ela de uma maneira tão febril que, ao saber que o pai da menina a levaria embora, tratou de arrumar um jeito de ir atrás, não se importando com o que pensavam sua esposa, seu irmão e irmãs, tampouco se isso traria prejuízo para sua família.

E, com efeito, prejudicou irremediavelmente a nossa vida, porque o dinheiro que lhe coube da venda do sítio, meu pai investiu em uma chácara que por três anos não produziu nada, endividando-o de tal modo que o banco acabou tomando a propriedade, fazendo-nos mudar para a cidade e viver numa casa alugada, enquanto ele dirigia um táxi o dia inteiro como meio de nos sustentar. E diante de cada desaforo que levava de algum passageiro, de cada corrida por caminhos esburacados que prejudicavam o seu carro, de cada fim de jornada sem ganho algum, ele se lembrava do irmão que lhe proporcionara aquela vida miserável, e o maldizia com toda a força que havia em seu coração.

Porém, meu pai raramente estava em casa, e com mamãe tinham liberdade para falar do meu tio. E era dessas conversas que eu sabia que ele tinha um filho da minha idade, e que sua mulher era a tia Rita, a tonta. Era exatamente assim que se referiam a ela minhas tias e parentes quando vinham nos visitar e ficavam conversando com minha mãe na sala. Diziam “A Rita? Ah, aquela tonta...”, ou então “Ave, não sei como a Rita pode ser tão tonta”, ou ainda “só mesmo uma tonta como a Rita pra agüentar uma coisa dessas”.

Apesar de mamãe sempre tentar defende-la, acabava sem argumentos contra aquela maneira com que a ridicularizavam, porque era mesmo inconcebível como tia Rita aceitava tão passivamente os atos libidinosos do marido. Estes não se resumiram ao caso ardente com a Leocádia, nem às constantes noitadas nos bordéis da cidade, onde diziam que gastava rios de dinheiro em bebedeiras e orgias: ele ainda mantinha duas putas que havia tirado da vida, dando-lhes casa e sustento em troca da exclusividade de seus favores sexuais. E as tais viviam como verdadeiras rainhas, vestindo roupas de grife e andando pela cidade com carros do ano – tudo às custas das lavouras do meu tio que, diga-se de passagem, produziam extraordinariamente, graças ao trabalho irrepreensível do Josias, o administrador das fazendas.

Por sua vez, a tonta da tia Rita ia a pé fazer compras no supermercado, trazendo nas mãos as sacolas de mercadorias. A tonta da tia Rita trajava os mesmos vestidos surrados da época em que moravam no sítio. A tonta da tia Rita fazia suas consultas médicas no posto de saúde. Enquanto o marido e suas putas esbanjavam o que também era dela, tia Rita – ah, como era tonta! – levava aquela vidinha humilde e sem nenhum conforto, cujos únicos prazeres eram dedicar-se ao filho e à culinária – que minha tia era excelente cozinheira eu também sempre soube (mamãe lembrava-se com um estalo de lábios os deliciosos quitutes preparados pela cunhada). E pelo filho ela tinha um zelo sem tamanho – contavam que a única vez que saiu do sério com o marido foi quando soube que este havia levado o menino ao bordel. Então encheu a bombinha com baygon e, ao ouvi-lo chegar, já alta madrugada, esperou que ele se deitasse para apanhá-la e borrifar o veneno em seu rosto, enquanto xingava-o exasperadamente de todos os piores nomes. E só não conseguiu intoxica-lo a ponto de lhe causar algum dano porque, ao contrário do que de costume, naquela noite ele estava completamente sóbrio, e com um único safanão conseguiu dar fim ao ataque de histeria da mulher.

Eu continuei ouvindo as histórias sobre meu tio ao longo dos meus anos, de sua incrível e invejada prosperidade financeira e dos excessos de sua vida desregrada. No entanto, começaram a chegar notícias de que seus dias já não eram tão afortunados como os de outrora. Desconfiado de que o trapaceavam, acabou demitindo o Josias, aquele que até então fizera de suas lavouras verdadeiras minas de ouro, e a partir daí, diante de sua completa incapacidade para administrar seus próprios bens, os negócios degringolaram de vez. Vendo a fonte secar, e antes que fosse tarde, suas putas venderam as casas e os carros que usavam, e sumiram no mundo com o dinheiro. E as meninas do bordel deixaram de se engraçar com ele, já que não tinha mais a oferecer o que elas realmente queriam. Para piorar, passou a sentir fortes dores abdominais, que o médico diagnosticou como uma pancreatite decorrente das bebedeiras constantes. Recomendou-lhe abstinência absoluta, ao que tio Júlio não deu ouvidos. Assim as crises continuaram, e foram se tornando mais freqüentes e agudas, acompanhadas de vômitos e diarréias. Então, quando as forças lhe faltaram a ponto de não conseguir mais sair da cama, quem cuidou dele foi tia Rita, a única a permanecer ao seu lado, em seu inquebrantável silêncio desde a noite das borrifadas de veneno, mas em sua desprendida e inabalável servidão. E foi ela quem lhe deu os analgésicos para acalmar a dor, quem limpou os vômitos no chão do seu quarto e lavou os lençóis esmerdeados de sua cama. E esteve com ele até que o sofrimento tornou-se tão insuportável que mesmo os remédios mais fortes não surtiam efeito e, sem dinheiro para pagar o tratamento, foi internado no hospital público da cidade, até que não resistiu mais às crises e faleceu. E quem foi no velório viu tia Rita impassivelmente sentada ao lado do caixão, as mãos cruzadas no colo e os olhos perdidos num ponto qualquer do piso da sala, os quais só se levantaram quando chegou até ela a cafetina, dona do bordel e velha conhecida de seu marido, oferecendo seus pêsames.

Depois disso eu não tive mais notícias de minha tia. Os parentes diziam que a casa onde vivia estava fechada, e que provavelmente estaria morando com o filho, mas ninguém sabia onde. Até que, alguns anos depois, numa tarde de domingo em que eu e minha mãe estávamos sentados nas cadeiras da varanda vendo a vida passar, perguntei se ela sabia o que havia acontecido com a tia Rita. Olhou-me de soslaio, com um meio sorriso nos lábios e, levantando-se, me pediu para esperar um pouco. Entrou em casa e logo depois voltou, entregando-me uma fotografia. Nela havia uma mulher com roupa de cozinheiro, diante de um restaurante com uma bela fachada. Indaguei com os olhos quem era, ao que mamãe respondeu:

_Essa é sua tia Rita. Hoje ela mora na Europa. Esse restaurante é dela. Comprou com o dinheiro que guardou enquanto seu tio Júlio era vivo e esbanjava com as vagabundas.

Fiquei com uma expressão de surpresa no rosto. Então era aquela a quem todos chamavam de tonta?

_Ela nunca deixou de me escrever, esses anos todos. Mas me pediu para não contar a ninguém. Diz que está muito bem agora, fazendo o que gosta, vivendo num lugar onde as pessoas a respeitam, junto com o filho e com o marido.

_Marido? Ela casou de novo?

_Casou. E com o único homem que a amou de verdade na vida, e que fez de tudo para que ela tivesse a vida que tem hoje.

_Você o conhece?

_Não pessoalmente, mas ela sempre falou muito dele em suas cartas. Dizia que era apaixonado por ela desde que chegou ao Paraná.

Mamãe voltou a se sentar e disse:

_Você se lembra do Josias, aquele que administrava as fazendas do seu tio?

Arregalei os olhos.

_Ele?

Balançou a cabeça afirmativamente, sorrindo.

_Foi o Josias quem aconselhou Rita a abrir uma conta num banco para guardar algum dinheiro, antes que o Júlio acabasse com tudo. E era ele quem depositava parte dos lucros das fazendas nesta conta, sempre que fazia alguma venda.

Eu estava realmente perplexo diante de toda aquela revelação. Depois de alguns instantes de silêncio, perguntei:

_Mas, mãe, porque ela não deixou logo o tio Júlio para ficar com o Josias?

Ela novamente balançou a cabeça, agora num tom de reprovação.

_Eu e sua tia não fomos criadas com esse tipo de pensamento, meu filho. Para nós, o casamento é algo para toda a vida, mesmo que ele não valha nada.

Desviou seu olhar para o jardim, parecendo estar refletindo naquelas palavras. Então, encolhendo os ombros, completou:

_Mas depois que seu tio morreu...

Ajeitou-se na cadeira, tomando uma expressão mais séria.

_O Júlio teve muita sorte na vida para o dinheiro, mas jogou fora tudo que ganhou. Nunca se importou com ninguém, só se preocupou com seus vícios. Com isso causou muita mágoa nas pessoas que viveram perto dele.

E suspirando, concluiu:

_É, meu filho, seu tio teve uma mulher de ouro, mas nunca soube dar valor. E depois de ter passado por tanto sofrimento e humilhação, agora a Rita merece toda a felicidade do mundo.

Voltei os olhos novamente para o papel em minhas mãos, e então vi a expressão radiante que aquela mulher da fotografia tinha no rosto – algo que só se vê em quem está sinceramente feliz.