Uma história e depois outra

Quando dizem que tudo é complicado, costumo refutar: - Nós é que complicamos tudo.

às vezes conseguimos embananar tanto nosso meio de campo, que fazer um gol, se torna impossível.

Vou tentar.

Dias desses, uma professora do meu Curso de Serviço Social nos explicava sobre estrutura familiar e dinâmica interna. Complicado os termos, não?

Ela foi escrevendo no quadro os nove tipos de estrutura familiares. E eu lá de "butuca", querendo tentar encontrar algum modelo que se identificasse com a minha família.

Consegui. Não só a minha como também identifiquei outras famílias que conheço, nos oito grupos restantes.

Bom, você deve estar imaginando qual seria o meu tipo de família. É um pouco complicado, mas posso explicar- Família Nuclear Extensa- Aliás, nós é que fizemos com que ficasse complicado: o entendimento e a família.

Vivemos juntos em uma mesma casa, meus pais, uma irmã, um irmão com as três filhinhas e eu com meus três filhinhos. Onze pessoas você já deve ter feito a conta, e deve também ter achado que não é tanto assim. Mas eu digo que somos quarenta e cinco. Compliquei?

Veja bem, são dois avós, dois pais, duas mães, nove filhos, nove irmãos, três tios, seis sobrinhos, seis primos e seis netos. Total quarenta e cinco. Não disse? E eu sei matemática.

Você deve estar de acordo com o meu resultado, não?

Acho melhor não se preocupar, nessa família tem coisas mais preocupantes.

Você pode estar pensando: e na hora do banho? E o pior um banheiro só!

Mas não é isso mão. É sobre umas historinhas que eu vou contar. Não vou dizer que descobri o Brasil. Não sou nem o Cabral, quanto mais ser responsável pelo ovo do pobre do Colombo!

Também não tenho idade para dizer que fui eu quem gritou às margens do Ipiranga: - Independência ou Morte!

Mas as historinhas que eu vou contar são um pouquinho mais complicadas ( já disse essa palavra, sei lá quantas vezes) que a história do Brasil e elas tem tudo a ver com um grito de independência. E acho que é de se especular, como chegamos à necessidade de termos que morar, na casa dos nossos pais, onze pessoas, se você ainda não concordou comigo. Eu continuo dizendo que somos quarenta e cinco.

Antes eu havia dito a palavra " independência" _ estado daquele que já conseguiu se livrar da "dependência". Eu não estou falando em deixar de participar, de comungar, ficar juntinhos, sofrer as mesmas tristezas, rir dos mesmos motivos e comer do mesmo pão. O trivial de sempre, mesmo que seja uma panela de canjiquinha. Estou falando de outra dependência, daquela que destrói, e que anula o nosso direito de ser gente e portanto, que nos faz andar"engatinhando”.

E é dessa dependência que nasceram várias histórias. Inclusive a da Menininha do Cabelo Vermelhinho e também a minha própria história.

Você sabe que às vezes contar a nossa própria história é um pouco difícil. Vergonha às vezes é substituída por amnésia.

Por isso...

Eu vou lhe contar a história de uma menininha que tem o cabelo vermelhinho. Seu nome é Fifi. Ela é minha sobrinha. É a mais novinha das quarenta e cinco pessoas que moram numa mesma casa.

Um dia Fifi nasceu. E nasceu livre como um pardalzinho. E nem tinha a Sacha para dar-lhe comidinha, portanto não quebrou as asinhas.

Ela já tinha duas irmãzinhas. Agora o papai e a mamãe têm três filhinhas. Só que nem sempre um papai e uma mamãe, com três filhinhas podem "viver felizes para sempre". Brincam com a gente quando colocam sempre final feliz nas historinhas como a Branca de Neve, Gata Borralheira, etc.

As histórias escondem lá no fundo do baú de um porão uma verdade. Se as crianças soubessem, iriam começar a sofrer mais cedo, e o sofrimento envelhece.

Eu gosto muito de brincar com a minha menininha cabelinho de fogo. E gosto de lhe contar histórias.

Eu sou a tia Didi, mas não sei se sou sua fada madrinha, mas como já sabem, moro com meus pais meus três filhos, uma irmã, um irmão que tem três menininhas e que uma delas é a Fifi.

Parece que a história já não está muito feliz! Vocês já notaram que sua mamãe não mora com a gente. Se morasse seríamos quarenta e nove... Esquece, deixa pra depois.

Ela mora longe, mas gosta muito de suas filhinhas.

É difícil explicar, não é? Principalmente pra Fifi que só tem três aninhos!

Costumamos dizer-lhe que a mamãe está "dodói" e que um dia ela virá morar com a gente. Haverá espaço para ela. Quem sabe ainda pintará muitos quadros? É o que mais gosta de fazer, e aí poderá comprar muitos batons para nossa menininha.

Você já deve querer saber qual o "dodói" que tem a mamãe da menininha, que é tão bonitinha, que tem o cabelo vermelhinho e que não tem nenhum dinheirinho na caixinha, portanto ainda não pode comprar batom. Você já ouviu também e é claro que o Brasil era dependente de Portugal. Bom, agora está querendo ficar dependente do FMI. Já ouviram também que os bebês são muito dependentes da mamãe.

Se você já sabe de tudo isso, já sabe qual é o dodói da mamãe da menininha. Ela se transformou num Brasil. Pesado não? Então vamos dizer que ela se transformou num bebezinho!

E enquanto ela não pode dar o Grito do Ipiranga, ou mesmo caminhar sozinha, nós vamos cuidar da sua menininha!

Nós estamos torcendo por sua saúde, e você sabe que uma torcida faz ganhar um jogo.

A Fifi já sabe o que é uma Igreja. E já aderiu ao consumismo também.

Veja bem. Passávamos em frente à Igreja da qual minha irmã é membro. E ele ia sempre com a tia.

Disse pra ela: _ Olha aí a sua Igreja.

_ Não Tia essa é a Igreja da titia. A minha é a da vovó. E a sua tia Didi?

_ A tia não tem Igreja.

_Eu vou comprar uma pra você, tá?

Ela adora comprar batom, todinho e salgadinhos. Agora quer comprar uma Igreja para mim. Mais tarde vai querer comprar a liberdade para sua mamãe.

Tente comprar Fifi, você vai conseguir! Não é tão caro!

Eu conheço muita gente que conseguiu comprar sua liberdade.

Eu faço parte dessa gente e também tenho minha historinha. Ela era povoada de Lobo Mau, de Bruxas malvadas e eu vou contar um pouco dela pra você:

Era uma vez uma menininha bem pequenininha.

Um dia ela achou que já estava um pouco crescidinha, já usava batom, não tinha medo de Lobo Mau e o FMI ainda não rondava sua floresta. Resolveu se casar. Encontrou um príncipe encantado, e teve três filhinhos.

Mas nem sempre é possível o " viver felizes para sempre". Mas as pessoas conseguem botar um pouquinho de felicidade, uma pitadinha de amor e contornar a situação, transformando-a num bolo delicioso. Só que não teve bolo nessa história. Ela nem tinha tempo pra fazer um bolo. Quanto mais torná-lo delicioso.

Ela saia muito, tinha muitos amigos, bebia muito e estava sempre alegre.Quando não bebia ficava triste, não queria ficar triste, mesmo sabendo que da sua alegria nascia a tristeza de muita gente. Mas estava difícil deixar de ser " alegre". Ela virou um bebezinho, igual à mamãe da menininha do cabelo vermelhinho, e igual ao Brasil.

Seus menininhos ficaram crescidinhos. Não usavam batom, mas já começavam a barbear-se. E aí eles resolveram comprar uma Igreja.

E lá, acho que conversavam muito com Papai do Céu e pediam pra que Ele cuidasse da mamãe, mas um dia ela adoeceu e se entristeceu.

E num belo dia, deu um basta a Portugal, e deixou de engatinhar como um bebê.

Hoje a mamãe desses menininhos já consegue andar sozinha. Um pouco cambaleante, mas sempre olhando pra frente. Vivendo como gente.

Voltando um pouquinho à história da menininha do cabelo vermelhinho, que queria comprar uma Igreja, que não tinha nenhum dinheirinho pra comprar batom e que não demora comprar a liberdade da sua mamãe, vai visitá-la no final do mês. Sempre que pode leva as menininhas para verem a mamãe.

Hoje as meninas já gostam de futebol. É que futebol tem torcedores. E todos estão torcendo para que a mamãe entre em campo. Esse dia chegará e ela gritará: _ Você me ensinou a andar Fifi!

Aí sim, o papai, a mamãe e as três menininhas poderão gritar: _ Nós descobrimos o nosso Brasil!

E viverão felizes para sempre!

Enquanto isso, nós vamos continuando dividindo o mesmo teto, as mesmas tristezas, as mesmas alegrias e as mesmas esperanças. Aliás, esperança faz parte do nosso trivial, ela vem misturada no arroz com feijão, ou mesmo na panela de canjiquinha. É uma festa.

Eu sei que um dia terei um canto meu, e sei também que a mãe da menininha que gosta tanto de pintar, vai criar um cenário bem bonito para nossas historinhas.

Agora você já sabe a história da menininha do cabelo vermelhinho e também a minha, que eu nem tenho cabelo vermelho, já aprendi a ficar triste e já sei andar de pé.

Penso também que já sabe como consegui chegar à conclusão de que somos quarenta e cinco pessoas e que quando a mãe da menininha voltar seremos quarenta e nove. Contar as cabeças é fácil, mas as relações... Principalmente na hora do banho!

Mas, " Liberdade ainda que tardia! "

Acho mesmo que compliquei o meio de campo. Mas você deve ter jogo de cintura. Dê uma mexidinha no time e talvez possamos fazer um gol!

Escrito em outubro de 1998. Os anos passaram, a menininha já é uma moça. A Mamãe da menininha teve um fim trágico em agosto de 2009.

Meus filhos se casaram, tenho cinco netos maravilhosos, as noras que pedi a Deus.

Perdi a minha mãe em 2010.

O FMI já não ronda nossa floresta.

Continuo na mesma casa com meu pai, a Fifi, duas irmãs e o pai da Fifi.

Vamos levando nossa vida, ainda temos momentos tristes que nos faz chorar, mas muitos momentos alegres nos quais nos reunimos, pandeiro, sanfona e violão e deixamos uma muvuca rolar.

Aquele cheiro de churrasco lá fora....Hum!!!!

Vó Didi
Enviado por Vó Didi em 05/03/2013
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