Três minutos de cotidiano.

Meus olhos, muito mais fatigados que desobedientes, puseram-se à janela. Incontidos. Foi um dia terrível. A riqueza de meu patrão aumentou hoje me sugando mais suor do que o normal. Não sei se mais que o necessário – não se pode medir a ganância; ganância é ganância. Lá estavam meus olhos, ainda astutos; nem muito, nem tão pouco. Mas o mundo e aquele dia ainda me invadiam através deles, de meu ainda olhar. Percebi em minha semi-letargia, apesar da escuridão que se aproximava, que a vida afogava-se diante de meu olhar perdido. O vai-e-vem descambado e seus sons misturados não combinavam com inércia que se divertia em meus sentidos. A vida diante de meus olhos era a vida que costumava ocorrer àquela hora, naquele lugar, por todos os dias. Todos estavam lá, todos. Os comuns e os não tão comuns assim, estes tão freqüentes quanto os primeiros. Os dias no Centro que não passam acompanhados de seus bizarros, não são dias comuns.

As Portuguesas me observavam atentamente. Percebi porque nossos olhares se cruzaram; melhor, se notaram. Lindas as Portuguesas, lindas! Maltratadas, mas ainda exuberantes; elas e suas histórias. Assim que nossos olhares, perdidos, se tocaram, percebemos o quão perdidos estávamos, ou somos, para a vida que nos suplanta sem perceber, ao passar desarvorada à nossa revelia. A ignorância de tudo e de todos que não eram eu e minha existência, isolava-me tanto quanto às Portuguesas, que precisavam suportar no mesmo silêncio, os pisões e solavancos do mesmo mundo que a elas dedicava a mesma ignorância. Aquilo era a vida em seu maior exemplo. Homens e mulheres bem trajados ou não, ignorando-se através de seus passos apertados e bem direcionados. Mesmo aqueles que pareciam cambalear na busca de um rápido sustento, sabiam para onde ir, a quem pedir. Esta era a vida para a qual tanto eu, quanto as Portuguesas, deixaremos de existir um dia, sem sermos notados. Entretanto, em mim a dor é maior. Mesmo quase em alfa, ainda assim consegui sentir meu parco sofrimento. A escuridão e o sono se aproximavam. As Portuguesas, pedras que são, parecem não sofrer, mas se sofrem, não podem alcançar a escuridão que já jogava minha cabeça contra a janela de vidro transparente.

O mundo me tocou novamente. Digo, novamente chamei o mundo a enquadrar-se em confissão a mais um pensamento vadio que emanava de meu entorpecimento. A mente e os olhos, ainda despertos, me permitiram observar dois novos velhos personagens de tantas noites como aquela. Eram dois italianos, dois velhos italianos. Eram quase sete horas da noite, o que faziam aqueles italianos ali, tão desajudados, com seus olhares tão perdidos quanto o meu? Não sei, e não sei mesmo! A maioria da população do país no qual eu nasci e vivo, não pode ver um italiano assim, tão desprotegido e oferecido que logo aguça suas garras na intenção do contato urgente. Tão urgente quanto a fome. Eram dois italianos. Sim, aparentavam ser ambos bem velhos, mas eram dois italianos. Suas aparências não favoreciam o desejo, isso lá era verdade. Pude fixar meu olhar em suas faces e estas transbordavam rugas, maldades do tempo de exposição à vida. Também tenho minhas rugas, mas meu fim não está tão próximo assim, suponho e desejo eu. Aqueles dois velhos italianos não suportariam muito tempo. A exposição àquela vida que passava diante de nossos olhos lhes fez muito mal. Adquirimos durante o caminhar de nossos dias um sabor próprio, uma espécie de tempero. É aquilo que os outros enxergam quando se aproximam, seja daquilo que nos é corpóreo, ou etéreo. Nosso “à oferecer”. nossas aparências. Olhando o aspecto daqueles italianos via-se claramente que a vida os castigou sobremaneira. Não exalavam mais. De que adiantavam agora seus temperos? Ainda carrego meus temperos, ainda os melhoro. Não sucumbirei assim, feito aqueles italianos cujas faces maltratadas e o interior duro e ressecado, afastava possíveis desejosos. Talvez, àquela hora, já deveriam mesmo seguir caminho em direção a um lixo qualquer. Meu pensamento vadio agora se alojara em um resquício de sentimento, então pensei, senti: Para todos, mesmo para os brutos e os ressecados há alguém que se encaixe. Havia esperança para aqueles dois velhos italianos. Um coração vivo, de estômago vazio e carente, logo apareceria para pleitear um deles, ou os dois. A vida é tão rica quanto pobre no Centro, principalmente àquela hora. Não se pode ignorar o que temos por dentro. Mesmo ressecado e duro, um sanduíche de presunto com queijo pode adiar o desespero para depois do sono. A vida passa, suplanta, mas é muito carente.

O motorista do meu ônibus, sempre transpirando mais devoção a Bush, que às resoluções de Kyoto, acelerava sua “enterprise” mantendo os pés na embreagem. Assim comunicava a seus futuros passageiros, a urgência de sua pressa. O motorista do meu ônibus não reparou nos italianos, talvez a imagem daqueles dois velhos samaritanos atenuasse seus destemperos. Abriu-se um quase sorriso em meu olhar. A solidão de meus olhos pareceu-me acompanhada. A vida não se afogava apenas em imagens frias de tão quentes e corriqueiras, ou não. Assim como as Portuguesas, os italianos acabaram dedicados ao ostracismo em minhas percepções. Descobri que meus ouvidos ainda estavam comigo e que meus sentidos finalmente deixaram o ocidente europeu em paz, relegados aos demais olhares perdidos daquela noite. O pensamento voou até a América do Norte. Talvez uma grande turma de pessoas tivesse se perdido, pareceu-me. Ao menos era o que demonstrava o quase desespero de alguns rapazes obstinados por encontrar seus pares, todos conterrâneos de George, o Bush. Os transeuntes eram abordados o tempo inteiro e, pelo balançar de suas cabeças, demonstravam não conhecer ou não ter ciência do paradeiro daqueles que pareciam perdidos. Os rapazes insistiam enfurecidos, em suas indagações, em sua busca: Corel?! Photoshop?! Norton?! Eram muitos os gringos desaparecidos. Cada pergunta, uma resposta negativa. As pessoas, insensíveis aos desesperos que lhes cobiçavam, chegavam ao cúmulo de mudarem de direção a fim de fugirem do assédio dos rapazes desesperados. Como procurar por alguém no meio de uma multidão de desconhecidos? Pior, desconhecidos que não fazem o mínimo esforço na intenção um do outro. Ressalvando os olhares furtivos direcionados a pessoas, em sua maioria do sexo feminino, ninguém ali parecia disposto a trocar sequer um olhar. Algumas gentilezas foram trocadas, naquele pouco tempo antes da escuridão, sim foram, mas dependiam de um esbarrão, de um tropeço e, não eram palavras tão gentis assim. Mas os humanos se comunicavam nessa hora. Pareciam despertar de um estado hipnótico. Norton?! Corel?!...Onde estão vocês? Os rapazes pareciam dispostos a não arredarem os pés de onde estavam, enquanto uma cabeça qualquer não fizesse um sinal positivo aos seus apelos.

Percebi que a porta de meu ônibus fechara-se. O motorista agora tentava arrumar nossas posições, as posições de seus passageiros, a todo custo. Para isso alternava uma acelerada mais forte, seguida de uma freada brusca e desavisada. Pronto, acho que todos estavam em seus lugares de uma maneira melhor arranjada. O motorista antes de largar do freio e dedicar-se apenas ao acelerador com afinco, despejou na atmosfera todo o seu descontentamento sob a forma de uma nuvem negra de fumaça, envolvendo quase que ao mesmo tempo a vida e seus viventes. Ah! As Portuguesas, os italianos e os rapazes desesperados também receberam sua cota de fumaça negra. É verdade... Isso explica as rugas dos italianos, o aspecto de abandono das Portuguesas e, o desespero dos rapazes que desejavam partir dali o mais rápido possível. Aquela fumaça pintava a vida que passava diante do meu olhar, que ainda se mantinha em luta contra uma impiedosa e carregada pálpebra. Norton?! Photoshop? Corel... Foram as últimas palavras das quais me recordo.

Acordo. Estou mais desperto e não sei ao certo o que faço aqui, com este lápis e este pedaço de papel em minhas mãos, olhando vazio, vadio, por através dessa janela transparente, que ainda não me revela o destino que escolhi, mas me diz que ali, diante de meus olhos passa a vida; a sua... e a minha.