PIANO DE BEIRA DE ESTRADA

“Poucos lugares são tão agradáveis quanto Pianos Bares. Se todos podem aproveitar tal prazer, por que não eles?”

Foi com esse pensamento que o gerente do luxuoso hotel no Jardins, que há pouco discutira com seu superior, fora demitido e estava em sua última semana de trabalho, deixou que entrassem e se sentassem os dois mendigos, figuras desagradáveis e malcheirosas, que festejavam alegremente na rua em frente ao Piano Bar, aproveitando as sobras da melodia lá de dentro que se emancipavam e iam conhecer a vida lá fora. É claro que, ao gerente, aquilo era acima de tudo uma vingança infantil, mas também havia, no fundo da alma, certa curiosidade, certa vontade de conhecer o sentimento que seria despertado com um gesto caridoso.

A quantidade de clientes que se levantou para ir embora foi tremenda. Surpreendentemente, ninguém ousou formalizar uma crítica, ou constatar em voz alta o incomodo gerado. No fundo, todos temiam os cutucões da consciência na hora em que se deitassem na cama.

As quatro mesas que ficaram consistiam em dois jovens casais, que na quinta garrafa de vinho já não viam problemas nos novos clientes, um casal de médicos com sua filha mais velha e seu irmão mais novo acompanhado da namorada, três amigos de infância passados dos trinta, que se encontravam uma, no máximo duas vezes por ano e duas jovens senhoras que buscavam ou a liberdade na vida casada, ou o compromisso na vida solteira.

A música cessou, os garçons se entreolharam, o chofer não abriu a porta do carro para a senhora que desembarcava por se entreter espiando o interior do bar do hotel. Os dois homens entraram caminhando devagar; o primeiro, alto e de costas largas, sorria e mostrava-se disposto a fazer novos amigos; o segundo, indiferente, cumprimentava a quem passava com um leve movimento de cabeça e flertava com as garrafas de bebidas importadas, que empoeiravam-se por detrás do balcão. Sozinhos puxaram suas cadeiras e se acomodaram. Com estranheza, as pessoas ao redor trocavam olhares umas com as outras, que por sua vez trocavam olhares com os mendigos, que aguardando o atendimento, trocavam olhares com os garçons, que prezando por seus empregos trocavam olhares com o gerente, que, por fim, sem trocar olhar algum com quem quer que fosse, respondeu decididamente aos seus funcionários:

- Hoje, para eles, é por conta da casa.

- Um uísque e um cinzeiro por enquanto, faz favor. – Finalmente quebraram o silêncio e, ao contrário do que imaginavam, não foi o sorridente quem falou, mas sim o mais mirrado que vinha atrás, acenando de leve a cabeça. O garçom fez uma pausa, buscando na memória a maneira correta de se portar ao cliente que ainda não havia feito o pedido, mas frustrou-se e apenas lançou um olhar ao mendigo maior, que compreendendo a dúvida do funcionário, se manifestou:

- Pra mim um cabernet, seco; pode ser o da casa mesmo... Não sou de abusar.

Conforme o ambiente, junto com seus funcionários e clientes, foi se adaptando aos novos visitantes, a ordem das coisas foi se restabelecendo, e as atenções voltaram-se novamente às conversas que haviam sido interrompidas. O gerente, vendo seu objetivo anárquico indo por água abaixo, aproveitou-se da proximidade das mesas e voltou a interagir com os mendigos, garantindo que todos ouviriam.

- Há quanto tempo não tomava um vinho, meu caro? – Ciente de que o tema atrairia a atenção de todos.

- De graça? Acho que nunca tomei. É ou não é, Igor? – Perguntou virando-se ao amigo do lado, que estudava o teto com uma curiosidade absurda.

- De graça acho que não. De graça é no máximo resto de Fanta.

- Igor? Xará do meu sogro e eu aqui dando uísque. – Soltou uma leve risada, tentando a aproximação o gerente. – E você? Qual sua graça?

- Alice. – Respondeu o mendigo maior que, notando o riso involuntário que esboçou o gerente, completou – Por quê? É o nome da sua sogra?

- Não, não... É que... Mas esse é seu nome mesmo ou você está de brincadeira?

- Esse é meu nome. Por quê?

- Porque é um nome feminino. – Retrucou o gerente. – Fica estranho em você.

- Isso porque colocaram na sua cabeça que o nome é feminino; assim como colocaram na sua cabeça que se tem que tomar vinho na temperatura ambiente mesmo em um país tropical, a quase 30 graus. – Falava sem fitar o gerente, enquanto observava o garçom servindo sua taça com a garrafa de vinho que obviamente não passara um minuto sequer em um refrigerador. – Ademais, o que é um nome se não uma forma de identificação?

Naquele momento, todos interromperam novamente as conversas. Não pelo nome, não pela conversa que aos poucos se iniciava, não pelo vinho que o mendigo pedira, mas sim pelo “ademais”. O vinho e o uísque, vindo de uma dupla de bebuns, não surpreendia ninguém: eles apenas pediram bebidas caras, tirando proveito da situação; o nome Alice, também não surpreendia ninguém: era mais do que esperado, vindo de uma dupla de bebuns, qualquer atividade fora do normal que acabasse sendo constrangedora a eles mesmos; o problema maior foi o “ademais”. Vindo de uma dupla de bebuns, que já havia surpreendido por ter esboçado uma discussão, sobre coisa qualquer que fosse, uma palavra como “ademais”, no meio do diálogo, sem precisar ser encaixada previamente na fala já preparada? Isso sim era surpreendente – para uma dupla de bebuns. Até porque, com exceção de uma das jovens senhoras e do casal de médico, as pessoas no local ou não sabiam o que era, ou não se lembravam de qual teria sido a última vez a utilizarem “ademais”.

- Aí eu vou discordar, Alice. – Disse, enfatizando com tom jocoso o nome de mulher, um dos amigos de trinta e poucos anos que, como os demais, escutava a conversa. – Seu nome tem um significado; traz uma história de vida; te associa a uma família, a laços consanguíneos.

- Não duvido da importância do seu nome pra você... (Que por sinal é?) – Indagou Alice, enquanto se encostava na cadeira acolchoada e cruzava as pernas, segurando sua taça de vinho.

- Meu nome é Fernando.

- Pois então, Fernando: não duvido da importância do seu nome. O que duvido é da origem de tal importância.

- O mendigo já deve tá na quinta garrafa de vinho da noite, e o Fer dando ibope pro cara. – Cochichou o amigo gordo, de cavanhaque e pulseira grossa de prata, ao terceiro integrante que, com a gravata afrouxada no peito, encarava seu copo de uísque, prestando atenção à conversa mas evitando olhares de quem quer que fosse.

- Como a origem de tal importância?

- A origem de tal importância, Fernando. Que o nome remete a uma família, isso eu sei; mas até que ponto ser associado a uma família é importante? Não digo importante superficialmente, do tipo “Ah, é minha família e eu os amo; tenho orgulho de carregar esse nome”, mas importante de verdade. Importante se pensado universalmente, se comparado com as coisas realmente importantes do universo e do mundo, com todas as cenas que passarão na sua cabeça no leito de morte e com tudo aquilo que valeu a pena. Se comparado a tudo isso, qual é a real importância de um rótulo verbal que lhe fora imposto quando nasceu? Qual é, de fato, a real importância de um nome, Fernando?

Enquanto o rapaz refletia, não só absorvendo a informação e pensando em uma resposta, mas também recuperando-se da surpresa de ter ouvido tudo aquilo de alguém que há pouco cantava bêbado na rua, sem sequer um teto onde dormir, o médico interveio, em tom alto e claro, sem apresentar a menor dificuldade para falar quase gritando.

- Pra mim foi essencial! Desculpa interromper – disse, estendendo a mão com dedos largos a Fernando, porém prosseguindo com a análise –, mas pra mim, enquanto médico, o nome de família que eu trago comigo abriu porta atrás de porta.

- Quem é sua família? – Perguntou uma das jovens senhoras, que não pôde deixar de notar a esposa do médico, que ao ouvir tal pergunta levou a mão à testa e baixou a cabeça, pronta pra ouvir pormenores de um discurso que há muito já conhecia.

- É família de médico...Balaccio. De médicos cirurgiões.

E assim iniciaram-se, simultaneamente, duas conversas distintas que dividiram o estabelecimento quase que de maneira uniforme entre opiniões e curiosidades. Enquanto o médico discutia métodos e avanços da cirurgia plástica nacional com sua esposa, seu filho com a namorada, a jovem senhora que outrora perguntara o sobrenome da família e o amigo gordo de Fernando, Alice e Igor entretinham Fernando, a outra senhora – essa já não tão jovem – amiga da jovem senhora, a jovem e curiosa filha da família Balaccio, o gerente e os dois casais, que hora ou outra esqueciam o conjunto e entretinham-se uns com os outros. O amigo magro de Fernando, com a gravata frouxa no peito, dormia sobre a mesa; alguns funcionários mais próximos também se divertiam com os relatos dos mendigos (mesmo que para eles aquela realidade pobre de Igor e Alice não fosse tão embaciada), e o pianista, ainda a trabalhar, esticava o ouvido entre um compasso e outro pra ouvir também alguns casos.

Nesse meio tempo, descobriram que Alice e Igor eram amigos de longa data, que se conheceram em uma rádio local, onde trabalharam juntos na adolescência, que juntos procuraram empregos em grandes empresas e conseguiram, e que juntos recusaram as vagas. Contaram sobre os três meses em que trouxeram mercadorias piratas do Paraguai, e sobre o um ano e meio de prisão por causa disso. Igor relembrou o momento em que, após serem soltos, eles adormeceram olhando o céu estrelado em uma beira de estrada, completamente bêbados, e juntos, ao acordarem, juraram jamais aceitar aquela realidade da maioria, distorcida e tida como única, onde se trabalha até a morte e se tem pavor do ócio e da vida sem grandes ambições, como se no fim não fosse tudo a mesma coisa.

- Por favor gente, não destruam meus sonhos. Vocês estão acabando com toda a visão de mundo que eu tinha. – Apesar de esforçar-se para manter a comicidade do pedido, era evidente que a vivência de todos ali desapontava a jovem Balaccio. – Pra vocês nada faz sentido; tudo é irreal e desnecessário. Eu não quero acreditar nisso.

- Minha jovem, não é que seja desnecessário. A questão é que com o tempo as perguntas só aumentam, até que um dia você aceita o fato de não encontrar resposta alguma, e simplesmente começa a viver. Viver por viver. Viver gratuitamente. – Pela primeira vez na noite, o gerente falava com franqueza. – E isso, confesso a você, chega a ser um alívio. Parar de procurar respostas é a única maneira de encontrar a felicidade.

- Me recuso a aceitar – exclamava a jovenzinha. E, se não fosse pela intervenção de Fernando, o assunto provavelmente terminaria por aí.

- Eu entendo o ponto de vista de vocês. Ou melhor, eu o aceito... Entender, não entendo. Agora, dizer que viver por viver, sem mais nenhuma expectativa ou anseio, acho meio absurdo. A vida tem que ter um norte, um porquê. Senão, pra que tudo isso? Garanto que uma vida repleta de realizações e conquistas é muito mais digna que uma vida acomodada. Vocês, por exemplo! Vocês estão plenamente satisfeitos com suas vidas? – Finalizou o jovem, voltando-se à dupla indigente.

Alice voltou-se para Igor, esperando que ele falasse, mas, segurando o copo de uísque pela base com a ponta dos dedos e observando sua transparência e as luzes que passavam por ele, Igor apenas deu de ombros e comprimiu os lábios, expressando que não havia interesse por sua parte em responder ao jovem.

- Fernandinho, veja bem – iniciou Alice, em um tom satírico, porém não desrespeitoso - A questão aqui não é a relevância da atividade que se pratica, mas sim a relevância em praticar a atividade que for. Além de ser uma afirmação preconceituosa colocar uma atividade acima de qualquer outra, é um ato esnobe e prepotente imaginar que a sua atuação influi, da forma que for, em acontecimentos ao redor do mundo. Um cargo X ou uma atividade Y não são nada além de encenações conjuntas. Quando você interage de um determinado modo com alguém, a fim de alcançar a um determinado objetivo, involuntariamente vocês estão ambos encenando uma peça de teatro, enganando-se ao achar que essa é a maneira correta de passar a vida, de matar o tempo. Na verdade, é um absurdo ensinarmos às nossas crianças que atividades devem ser empregadas a fim de matar o tempo. O tempo não tem de ser morto, mas sim vivido, utilizado.

- E vagabundear por aí é a melhor maneira de utilizar o tempo? – Indagou a ainda inconformada Balaccio.

- É uma maneira de aceitá-lo. Toda e qualquer resistência a isso é um modo de afrontar essa existência e, consequentemente, deixar de enxergar tudo o que há de belo nela e no que a cerca. A gente só enxergou a fundo, lá no seu âmago, o céu estrelado que nos envolvia naquela noite na estrada, bêbados, porque abnegamos a toda e qualquer atividade. Porque nos abrimos por inteiros a essa existência, a esse agora, a esse aqui. E, acreditem em mim quando digo, quando se conhece o âmago de um céu estrelado de beira de estrada, não se aceita mais mentiras e detalhes inventados por alguém que quer que matemos nosso tão precioso tempo.

- Pra mim, vocês estão extremamente bêbados e só querem propagar essa ausência de interesse pela vida que domina vocês. – Refletiu a jovem.

- Um dia, minha cara, você vai me entender.

- Sinto muito, meu caro, mas não enquanto eu for viva.

- Ainda assim, um dia você vai me entender. – Finalizou Alice.

Quando os primeiros raios solares iluminaram o Piano Bar, o pianista e grande parte dos funcionários já haviam ido embora, bravos por saberem que entrariam às 13h00 no trabalho no dia que acabara de nascer; os dois casaizinhos se despediram e pediram seus carros, felizes por ainda ser sábado, um dia relativamente longe da segunda-feira; a matriarca da família Balaccio marcara um jantar com as duas jovens senhoras, porém apenas para o próximo final de semana, para não atrapalhar a rotina estudantil dos jovens e seus deveres durante os dias úteis; o pai Balaccio trocara cartões com o amigo gordo de Fernando, excelente vendedor de carros de luxo e, portanto, excelente bajulador de médicos cirurgiões – marcaram um almoço; o filho mais novo do casal de médicos e sua namorada já reclamavam há um tempo, cientes de que teriam que estudar no final de semana para o vestibular que se aproximava, almejando os 6 anos de ainda mais estudo que estavam por vir na faculdade de medicina; Fernando e a jovem Balaccio, após se entreolharem muito durante a noite, trocaram contatos, e apenas com a euforia momentânea que uma possibilidade de aproximação gera, esqueceram-se de tudo o que conversaram com os mendigos naquela noite, adicionaram-se em redes sociais e saíram duas ou três vezes, até questões mais importantes, como carreira, faculdade e etc. atrapalharem e eles não se verem nunca mais; o gerente pensou muito sobre tudo o que ouvira e quis utilizar seus seis meses de Seguro Desemprego para vagabundear e aproveitar o ócio. Seis semanas depois ele aceitara um novo emprego, onde trabalhava dez horas por dia e ganhava o dobro do que no emprego anterior. Contentara-se com a felicidade extrema uma vez por mês, sempre no dia 10, e decidiu que mendigos são manipuladores e que não valia a pena ajudar vagabundo.

Quanto aos mendigos, por alguns anos mais farrearam e exploraram a pé o país onde nasceram, mendigando e pedindo o pouco que precisavam, olhando o céu e o mar e compreendendo o muito que já tinham em mãos, até que um dia beberam demais e se esqueceram de ir até o acostamento para olharem as estrelas do céu. Morreram atropelados por um caminhão, o que sobrara de seus corpos fora estudado meticulosamente pelos alunos de medicina da USP, entre eles o jovem Balaccio, que, como todos os demais alunos, terminara aquela aula satisfeito por ter aprendido algo novo, e sem saber que com aqueles, cujos corpos acabara de estudar, podia ter compreendido mais do que qualquer faculdade podia ter lhe ensinado.

FIM

Juliano Guillen Pupo
Enviado por Juliano Guillen Pupo em 13/03/2013
Código do texto: T4185541
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