Abbu (-)

Ontem eu estava sentado no sofá da sala e o meu cachorro veio morder minha mão, eu logo tirei minha mão, pois não podia ficar com a baba na mão, já que mais tarde eu tinha um compromisso: ir jantar no shopping com minha namorada. Meu tio, que mora na minha casa não gostou de eu ter tirado a mão de perto do cachorro e disse:

- Porra, cara! Isso é jeito de tratar o Abbu?!

Ele não estava brincando, falou seriamente. Mas por que essa grosseria só porque eu tirei a mão da boca do cachorro? Bem, vou explicar. A religião da minha família tem uma crença de que quando um de nossos parentes morre a alma encarna no corpo de um animal quadrúpede, meu pai morreu e minha avó observou um cachorro que começara a dormir em frente minha casa, a fim de entrar. Aquele desde então era o meu pai, porém seu nome transformaria de Jorge para Abbu.

O tio Carlos era completamente defensor do cachorro, pois antes da morte do meu pai, tio Carlos e meu pai tiveram uma briga e essa briga fez meu pai sair furioso de casa e ser atropelado por um caminhão. Quando meu pai virou cachorro meu tio, nas suas sérias conversas com Abbu, disse que queria se desculpar e que defenderia ele pelo resto de sua vida humana.

Quando qualquer pessoa negava brincar com o Abbu, ou dar comida, ou atenção era motivo para o tio Carlos começar fortes discussões dentro de casa. O grande problema é que eu era o único que não acreditava que o Abbu era o velho Jorge, por isso tratava o cachorro como cachorro. Minha mãe, o tio Carlos e meu irmão ficavam tristes por eu não me submeter à mesma fé que eles.

- Ele só quer brincar, qual o problema, mané?

Meu tio tinha problemas com o modo de falar, era raro falar uma frase sem aparecer dois ou mais palavrões ou formas de ofensa, mas eu já havia me acostumado com aquele jeitão dele desaforado e arrependido de ser. Na verdade, eu entendia todos daquela casa, ninguém estava realmente preparado para aceitar o fato que meu pai tinha sumido, desaparecido da vida na terra, encontrar um cachorro de rua com cara de tadinho foi uma forma que meus familiares encontraram de minimizar a dor e o arrependimento, no caso do tio Carlos.

- O negócio é o seguinte, moleque de uma figa, enquanto você não brincar pelo menos vinte minutos com o Abbu você não sai de casa com sua namoradinha! Ta certo?

Quando o tio Carlos falava, eu tinha duas opções, a primeira era obedecer e deixar tudo calmo a segunda era desobedecer e ele começar a chorar, gritar comigo e fazer leréia, o que realmente não combinava com meu modo pacífico de ser. Adotei a primeira opção, e nada que uma água não pudesse ajudar a tirar a baba da mão. Brinquei com Abbu, para o tio Carlos ficar na dele, mas isso ainda parecia impossível.

- Porra, Jô, você tem que entender que o Abbu precisa mais de sua atenção, quando ele era o Jorge, vocês eram os melhores amigos! Preserva essa amizade, senão é foda.

Realmente, eu e meu pai éramos muito amigos, uma amizade que ultrapassa o patamar de pai e filho. Tudo que ele fazia tinha que ser comigo ao seu lado, nós nos divertíamos muito e a sua morte significou nada mais que a maior perda da minha vida. Talvez esse fosse o motivo de eu não poder substituir aquela amizade apaixonante por uma amizade com um cachorro.

O fato de acordar e ver toda a minha família conversar com o Abbu, me deixava bobo. Aquela casa começava a parecer uma casa de loucos. Era um simples cachorro, que não falava, apenas latia, rosnava, chorava. Mas não era meu pai, meu pai falava e todas vezes que acordava ia ao banheiro, já o Abbu faz suas malditas necessidades em frente meu quarto, quem tem que limpar? “O filhão” ! Meu pai, nos finais de semana logo colocava sua roupa e começava a caminhada comigo ao seu lado, já o Abbu só anda atrás das cadelas procurando colocar mais pais no mundo. Meu pai me dizia: - Eu te amo! O Abbu só diz Auuu Au Au.

Mas apesar de tudo eu comecei a brincar com o Abbu, ele mordia minha mão. E de repente percebi que ele não apenas mordia, mas parecia que queria arrancar minha mão. Puxava em sentido contrário ao meu corpo, parecia que queria a mão para ele para todas as vezes que quisesse morder uma mão não precisasse me incomodar. E puxava forte, o Abbu tinha uma força irreconhecível naquele momento e parecia que não queria brincar, aquela força era tudo menos brincadeira de cachorro.

Para não perder a mão tive que me levantar do sofá e ir para cima dele para aliviar a mordida e fui andando com aqueles caninos prendendo minha circulação, e andando e fui parar no quarto da minha mãe e ele ficava olhando para o armário da minha mãe, enfim, sem mais me morder, ele não queria roubar minha mão, senti que tinha o objetivo de me mostrar algo, fui abrindo gaveta por gaveta até que ele latiu em uma das que abri, foi onde encontrei um álbum de fotografia, onde só tinha fotos do meu pai.

As fotografias do meu pai minha mãe recusava ver, pois sentiria saudades de alguém que ainda estava com a alma naquela casa, e talvez a religião da minha família não permitisse isso também, não sei.

Sentei na cama e, junto com Abbu, comecei a folhear as páginas do álbum de fotografia. Na foto que estavam eu e meu pai abraçados Abbu late novamente. Foi aí que senti que aquele cachorro me conhecia de verdade e seus olhos estavam cheios d’água assim como os meus, tirei a foto para guardar comigo, quando tirei a foto percebo que havia algo escrito no verso da foto

“Filho, sei que um dia irei morrer, isso para mim não é ruim, pois sei que você viverá ainda mais e se você viver como uma pessoa honesta e que honre todos os dias o nome da sua família estarei feliz em qualquer lugar que estiver. Esta foto simboliza nossa amizade e espero que você se lembre eternamente na afeição que existia entre nós, pessoas podem morrer, mas sentimentos ficam petrificados na nossa história para sempre, lembre-se disso. Te amo! Espero que estas linhas sejam lidas por você, meu filho e amigo! Te amo!”

Comecei a questionar os meus próprios princípios, até que ponto eu me considerei certo frente a minha família sendo que, em relação à vida eu não sei mais que ninguém, fiquei chocado e feliz ao mesmo tempo, lembrei do meu pai, abracei o Abbu, e dei a maior atenção do mundo pra ele. E “ai” de quem o chamasse de cachorro!

Eu e minha namorada desmarcamos o shopping e fomos ao parque, mas agora com a companhia do Abbu. Amigos que a partir de então não se separariam mais.

Fron Monseus
Enviado por Fron Monseus em 26/03/2007
Reeditado em 25/10/2009
Código do texto: T426420