A MOÇA DA PRAIA
(Um dos 30 contos escolhidos para compor a coletânea Sonhos & Pesadelos) Concurso realizado pela Editora Aped no facebook. O livro tem previsão de lançamento para junho/2013
Aquela mulher insistia em freqüentar meus sonhos todas as noites. Parecia que tinha comprado todos os ingressos e que sua presença era de alguma forma obrigatória ou essencial. Eu nunca conseguia lembrar inteiramente dos meus sonhos, a não ser que acontecessem durante o dia, quando eu acordava e não dormia outra vez. Os sonhos noturnos por algum motivo sempre acabavam me despertando e então eu tinha uma visão nítida de tudo que acontecera enquanto estava inconsciente. Mas quando dormia de novo as lembranças se apagavam, sumiam, como se uma borracha de apagar mentes houvesse feito seu trabalho na segunda parte da noite. Na manhã seguinte não lembrava de quase nada, apenas de vagos fragmentos que acabavam se perdendo durante o dia. Sempre foi assim. Ficava impressionado quando ouvia alguém contar suas experiências noturnas com uma riqueza de detalhes tão grande que às vezes achava que a pessoa estava inventando tudo aquilo. Só quando percebi que minhas noites eram sempre divididas em duas partes, pude entender por que não lembrava de nada: o “segundo tempo” apagava tudo. Mas desde que ela apareceu, a noite tornou-se uma só e não me esqueci de mais nada.

Como eu disse, era raro lembrar de algum sonho, mas por uma estranha razão, sempre lembrava dos pesadelos. Tinha pesadelos fixos que retornavam de tempos em tempos e os roteiros deles eram basicamente os mesmos: quedas de abismos, perseguições alucinantes e muita violência. Mas o mais freqüente era com o Seu Avelino que foi o terror da minha infância. Naquela época ele passava na rua caminhando reto, parecendo uma estátua militar que ao invés de andar, simplesmente pairava subindo a ladeira com seu imutável terno cinza que já apresentava tons amarelados nos ombros onde o sol batia com mais intensidade. Ninguém nunca o vira com outra roupa, ou sem seu chapéu de feltro igualmente desgastado. Todos diziam que no passado ele havia matado a sua esposa depois de uma traição e enterrado nos fundos da casa onde morava. Uma casa que parecia uma cripta cinzenta e ficava na mesma calçada que a minha, um pouco acima na rua, onde nenhum vizinho entrava depois de sua morte.

Nos pesadelos, ele sempre vinha subindo a ladeira com o rosto quase encoberto pelo chapéu e um toco de cigarro de palha no canto da boca, enquanto eu ficava no portão tremendo de medo sem poder sair do lugar, até que ele se aproximava e tentava me pegar. Então eu acordava. Mas naquela noite o pesadelo repetido centenas de vezes foi diferente. Avistei de longe a figura do Seu Avelino subindo a ladeira, mas conforme se aproximava os contornos daquela aparição foram mudando lentamente, e quando estava bem próximo vi que era uma mulher muito bonita que caminhava nua em minha direção, embora a nudez não fosse totalmente visível, era indistinta. Somente o rosto era perfeitamente visível. Um rosto de menina onde eu podia ver algumas sardas dos lados do nariz fino e jovem. Ela não tentou me pegar como o velho. Fazia sinais para que eu a seguisse, o que não tive dúvidas em fazer. Então de repente a paisagem mudou. Ela caminhava numa praia onde não havia mais ninguém, e continuava a fazer sinais para que eu a acompanhasse. Quando me aproximei e ia tocá-la pela primeira vez, a figura macabra do Seu Avelino apareceu entre nós e o sonho se desfez.

Fiquei sem sonhar ou ter pesadelos por alguns dias, mas não conseguia esquecer aquele rosto. Parecia uma lembrança vaga que não se sustentava nas minhas recordações. Algum tempo depois voltei a sonhar com ela e o mais incrível é que o sonho continuou de onde havia parado, mas sem a figura de Seu Avelino naquele momento. Caminhei de mãos dadas com ela durante muito tempo na areia, sempre perto do mar. Não havia diálogos entre nós, apenas o aperto das mãos e os sorrisos que trocávamos de vez em quando. Não dá pra falar quanto tempo sonhei. A medida de tempo com certeza não é a mesma de quando estamos acordados. Em certo momento ela soltou minha mão e correu para dentro do mar. Ela estava dentro do mar e ao mesmo tempo não estava e quando eu me aproximava de sua mão estendida, o fantasma de meu vizinho da infância apareceu rodeado de sombras e eu acordei. Então, a sensação de vazio e de perda ocuparam todas as horas do meu dia, e eu só pensava em abandonar o trabalho e ir pra casa dormir e encontra-la de novo.

Sonhava agora todas as noites e não havia lapsos nos intervalos dos sonhos. Parecia a seqüência de uma novela que seguia capítulo a capítulo avançando para um final desconhecido, mas que era sempre interrompido da mesma maneira. O mais interessante de tudo isso é que eu acordava cansado e com dores nas pernas, como se as longas caminhadas noturnas fossem reais e de certo modo abalassem as estruturas de minhas pernas sedentárias e de meu corpo acostumado a ficar sentado o dia inteiro no escritório. Não demorou muito, os colegas de trabalho e o chefe do departamento notaram minhas olheiras profundas bem como a seqüência de erros primários que cometia todos os dias, pois trabalhava com cálculos complexos e não podia errar. E depois de algumas conversas com o gerente do local, ele me aconselhou a procurar o médico da empresa e mesmo antes do diagnóstico, insistiu que eu tirasse férias, pois tinha duas vencidas de qualquer maneira.

O médico concluiu que eu estava com os nervos abalados devido ao excesso de trabalho e a insônia. Depois de vários exames ele exigiu, como o gerente, que eu me afastasse do trabalho imediatamente e receitou alguns comprimidos, entre eles um fortíssimo tranqüilizante, recomendando que eu tomasse apenas quando tivesse certeza que não conseguiria dormir. Na verdade eu não tinha insônia, mas por algum instinto oculto, nada disse ao médico. Entrei de férias, comprei os remédios receitados mas não tomei. Sabia que de nada valeriam.

Os sonhos continuaram e o relacionamento com a moça foi se tornando cada vez mais íntimo. Agora andávamos abraçados pela praia infinita, mas logo aparecia a figura daquele vampiro do passado, com um sorriso desdenhoso no rosto antigo e o sonho evaporava. Minha paixão pela moça e o ódio ao Seu Avelino, consumiam minha vida. Quase não comia mais. Não suportava mais ficar acordado e não saber o que acontecia do outro lado. Pensava em mil maneiras de acabar com a vida daquele ser do inferno mas não sabia nem mesmo se ele tinha realmente vida. Passei a dormir com uma faca muito afiada que comprara numa casa de caça, na cintura, sob a camiseta e a usar os comprimidos pra prolongar o sono. Num desses sonhos quando estava abraçado com ela e o homem chegou, tirei rapidamente a faca e ataquei. Fiquei surpreendido com a agilidade com que ele se desviou. Pude ver que a faca rasgou o paletó surrado na altura da barriga mas com o movimento do velho ela escapou da minha mão e voou longe. Quando acordei agitado mas quase entorpecido pelo efeito dos tranqüilizantes, procurei a faca na cintura e não achei. Só meia hora depois, quando tive disposição suficiente para me levantar, notei que ela estava sobre o tapete perto da porta e bem longe da minha cama.

Nesse tempo já havia conseguido vários frascos de comprimidos de maneira clandestina e praticamente passava os dias dormindo e ao lado dela no sonho. Seu Avelino desapareceu por um tempo, mas acabou voltando e eu tinha que acordar. Fiz inúmeras tentativas de matá-lo nos sonhos seguintes, mas ele sempre conseguia escapar e depois voltava. Eu passava quase todo o tempo na cama, mas num certo dia tive uma idéia. Sabia que a antiga casa do Seu Avelino ainda estava à venda que ninguém comprava. Consegui pegar as chaves na imobiliária com a desculpa de estar interessado no imóvel sem qualquer dificuldade e fiz cópias delas. No dia seguinte, meio embriagado pelo efeito dos comprimidos, enchi o tanque do carro várias vezes e passei o combustível para dezenas de galões que espalhei por todos os cômodos. A casa estava no centro de um grande quintal, de modo que o fogo não atingiria a vizinhança. Não foi difícil fazer um mecanismo pra dar início ao incêndio usando um balde, uma bóia e dois fios descascados que se encontrariam à medida que a torneira pouco aberta fizesse a bóia subir. Tranquei tudo e me afastei do local. Uns dez minutos depois ouvi a explosão do primeiro galão e em seguida dos outros à medida que eram alcançados pelo fogo. Não sobrou nada da casa. As paredes velhas caíram pouco depois do início do incêndio enquanto eu observava de longe.

Hoje voltei a encontrá-la e retomamos nosso passeio. Está mais feliz do que nunca. Até a atmosfera da praia é outra, o sol parece mais gentil. Sinto que Seu Avelino nunca mais vai aparecer, ele foi aniquilado e se juntou às ruínas da casa. Hoje também é o dia que terminou minhas férias. O gerente e os colegas de escritório devem estar curiosos pra saber como eu estou. Olhei-me no espelho antes de dormir e acho melhor que eles não saibam. O que vi foi uma caricatura de mim mesmo, esquelético e com os contornos dos olhos enegrecidos. Mas aqui estou feliz. Tomei os últimos dois frascos de comprimidos de uma só vez e tenho certeza que é impossível voltar. E eu não quero voltar mais. Só quero saber o nome dela e aprender a viver por aqui, onde o tempo não anda tão depressa e a dor não existe de verdade.
 
AMAURI CHICARELLI
Enviado por AMAURI CHICARELLI em 08/05/2013
Reeditado em 14/07/2013
Código do texto: T4280589
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