Vovô
Meu avô, que não acreditava em astrologia, tinha grande orgulho de ser do signo de Leão, pois tinha nascido no dia 31 de julho. Sabia o dia e o mês, mas não sabia o ano. Essa aparente contradição era explicada por ele devido a um fato histórico. Foi no dia 31 de julho que Lampião entrou em Nazaré do Pico. Seu pai era um dos soldados que travaram batalha com Lampião e perseguia cangaceiros pelos sertões e esse dia ficou marcado na memória dele, mas só o dia. Daí a vida errante de fugas e batalhas impediram o registro do nascimento de vovô por muito tempo e finalmente quando ele foi registrado seu pai não lembrava mais o ano de sua chegada ao mundo. Eu era pequeno ainda e me empolgava com essas histórias mas, a verdade é que vovô parecia não gostar muito desse assunto e só mais tarde percebi que o bisavô parecia mais político do que soldado pois vovô oscilava nas narrativas; seu pai ora fazia parte do bando de Lampião, ora era o soldado que o perseguia. De maneira que eu nunca soube realmente de que lado meu bisavô estava. Mas de uma coisa eu nunca tive dúvidas, ele sabia contar uma história. Quase não tinha instrução, lia com certa dificuldade e falava errado, mas naquele tempo e no convívio que tínhamos todos estavam no mesmo nível cultural e dessa forma ninguém sequer sabia quem falava certo ou errado.

Eu fico admirado quando leio um livro ou vejo um filme de suspense em que o escritor ou o diretor conseguem prender a atenção do público de tal maneira que podemos ler o livro ou ver o filme muitas vezes sem que o fascínio se perca com as repetições. Vovô era assim. Tinha acho eu, uma veia artística dissimulada atrás da rudeza de homem da roça, e sabia fazer os gestos e as expressões na hora certa, conseguindo manter os olhos dos filhos e netos atentos e brilhantes em sua direção. Era um contador de causos. Mas isso não impedia que a cada narrativa, certos detalhes faltassem, mudassem ou outros fossem acrescentados. _A mesma assombração que numa história mancava duma perna, numa outra narrativa do mesmo fato, corria mais que um corisco, na linguagem dele. Não sei se os outros percebiam essas distorções ou era só eu. Mas isso eu nunca procurei saber. Se os outros notavam, ou não ligavam ou ficavam calados como eu, tinham seus motivos. Se existia uma coisa que vovô não suportava era ser interrompido ou colocado em situações constrangedoras. Ele não mentia nunca. Era um outro traço de sua personalidade. E as contradições eu acho, deviam-se a empolgação do momento ou a lapsos de memória.

Vovô também tinha horror aos comunistas. Vivíamos na década de 70 e ser chamado de comunista nessa época era a mesma coisa que ser chamado de antropófago ou pedófilo. Devo agradecer ao vovô por ter me dado, sem querer, um impulso em direção aos livros, pois seu ódio aos comunistas foi um incentivo ao meu interesse pelos assuntos históricos e políticos. Tudo que tinha o menor traço de proibido ou contraditório me atraia como a luz atrai insetos. É claro que ele e quase ninguém da nossa esfera social sabia nada sobre sistemas ou regimes políticos. Não havia eleições diretas presidenciais, apenas para governadores e prefeitos nos cargos do executivo e dessa forma pouco se ouvia falar em política, ao menos na nossa casa.

Meu avô tinha um traço marcante. Tinha o orgulho de um deus e a honestidade muito superior a aquele. Preferia perder alguma coisa do que levar vantagem indevida sobre alguém. E realmente perdeu muita coisa durante a vida, por teimosia ou por assumir responsabilidades que não tinha obrigação nenhuma de assumir, agindo assim apenas para não prejudicar um terceiro. Essa honestidade porém, era restrita às relações que envolviam dinheiro ou bens materiais pois vovô, segundo soube anos mais tarde pelas histórias contadas pelas minhas tias mais velhas, era um tremendo conquistador e se envolvera em muitas brigas, levando facadas e até tiros de maridos enfurecidos. Em uma fotografia em preto e branco, muito antiga, tem a foto dele sobre um cavalo entre outros cavaleiros. Aparece com o queixo levantado e o olhar de general. Era um homem muito bonito embora de baixa estatura e meio atarracado. E na fotografia dá pra ver que ele carregava uma sanfona nas costas, presa com duas faixas cruzando o peito. Esse instrumento ele carregou por muitos anos enquanto participava das Folias de Reis e só se desfez dele quando quebrou os dedos de uma das mãos e não podia mais dobra-los.

A sanfona devia exercer uma forte atração sobre a mulherada do sertão porque foram muitos os casos que ouvi sobre vovô. Das várias histórias que ouvi dele próprio, nenhuma era sobre suas conquistas femininas, mas se ele não contava, as filhas e filhos mais velhos, meus tios, não eram tão discretos assim e as histórias vazavam a revelia dele. Ele nunca ficava sem camisa na frente de ninguém, o máximo era uma camiseta regata que usava e que não escondia totalmente as diversas cicatrizes que ele tinha espalhadas pelo corpo, mas esse era um assunto que ninguém se atrevia a perguntar.

A personalidade dele era contraditória. Foi criado na roça, na enxada, como dizia. Foi mascate, fabricante de queijos e linguiças, vendedor de tecidos, agricultor, carpinteiro e dono de hotel. Adorava cozinhar e fazer churrascos e era extremamente popular no bairro onde morávamos. Tirava o inseparável chapéu dezenas de vezes em sinal de cumprimento aos homens e mulheres que passavam por ele na rua. Mesmo com toda essa simpatia, ninguém se atrevia a brincar com ele. Muitas vezes vi homens muito maiores e mais fortes serem humilhados e massacrados por vovô logo depois de ofende-lo. As ofensas na maioria das vezes eram provocadas por ciúmes – justificados ou não – ou apenas por inveja de sua popularidade. Quando estava de bom humor adorava fazer trocadilhos e nem sempre dava pra entender o que ele queria dizer, mas a gente fingia que entendia porque era raro vovô estar de bom humor. Talvez fosse essa a maior contradição dele. Tido como um homem bravo que nenhum de nós tinha coragem de desobedecer, de vez em quando não hesitava em dar uma boa surra nos filhos. Mas ai de quem tocasse num filho ou neto seu, Ele se transformava num capeta. E, mesmo dando umas pancadas em seus filhos de vez em quando, nunca levantou a mão pra qualquer um dos netos e não admitia que ninguém o fizesse, a não ser o próprio pai. Nesse caso, mantinha distância e não dava palpites.

Ele tinha uma maneira persuasiva de convencer os meninos a obedecer. Não havia água encanada ou rede de esgotos naquele tempo, pelo menos onde morávamos, e cada família tinha seu próprio poço e sua própria fossa. O bairro onde eu morava ficava numa região alta da cidade e assim a profundidade dos poços muitas vezes, chegava a mais de 20 metros para alcançar o lençol de água. Nada me aterrorizava mais do que olhar para o fundo do poço e ver apenas reflexos prateados no fim daquele túnel vertical. Um buraco negro que parecia levar às profundezas da terra. Sabendo do nosso medo ele sempre ameaçava nos jogar no poço ou trancar-nos num quarto escuro depois de alguma “estripulia” nossa. Uma coisa que fez com que eu tivesse pesadelos durante muitos anos. Mas ele era um homem muito bom e justo e atrás do seu gênio aparentemente bruto e grosseiro, escondia um ser humano caridoso e que nunca recusava ajuda ou comida a ninguém.
Nas refeições éramos nós que fazíamos o prato com a quantidade que cada um quisesse. Mas uma vez feito, era melhor comer tudo, pois ele não aceitava que se jogasse comida fora. E não era por mesquinhez ou economia. Mas porque o desperdício era pecado e a comida desperdiçada, era a mesma que faltava na boca dos necessitados. Assim era vovô. Sua religiosidade e fé em Deus era absoluta. Lembro que algumas vezes o encontrei num pequeno quarto desocupado que ele usava quase que exclusivamente para suas orações. Ficava pelo menos uns quinze minutos ajoelhado ao lado de uma pequena mesa e nada que acontecesse nesses minutos era capaz de tira-lo de lá. Senti-me constrangido nas vezes que entrei no quarto sem querer nessas horas, e de alguma forma me sentia culpado por nunca ter conseguido qualquer traço de fé.


A rotina das histórias contadas por meu avô diminuiu com a chegada da primeira televisão. Antes só havia um rádio velho que ficava ligado baixinho enquanto ele desfilava pra nós suas aventuras nos sertões. Os filmes de farwest tornaram-se o único vício que percebi em vovô durante o tempo que morei em sua casa. Os tiros, socos e pontapés eram seguidos de gestos dele que chegava a arrastar a poltrona pelos movimentos que fazia acompanhando a coreografia das pancadas e eu ficava em dúvida entre ver os filmes ou ver meu avô ali, atuando do lado de fora da tela em preto e branco. Nas transmissões de carnaval, vovô que era muito moralista, sentava na sua poltrona e se remexia como fazia ao ver os filmes e quando apareciam as mulheres seminuas ele exclamava:
__Que indecência! Que indecência! –O que não o impedia de praticamente babar com os olhos.

Resolvi escrever sobre meu avô hoje, porque amanheci num raro dia de lucidez e a lembrança dele pode ser uma das últimas que tenho antes de cair no anonimato do esquecimento. Foi isso que aconteceu com vovô. Tinha quase setenta anos quando suas atitudes começaram a mudar. Estava aposentado e passava o dia fazendo bancos de madeira no galpão que ficava atrás da casa ou cuidando de uma pequena horta onde cultivava alface, couve e algumas hortaliças que nunca faltavam nas refeições. Nessa época era um velho bondoso e alegre, muito diferente do homem rústico e muitas vezes grosseiro que fora no passado. Mas alguma coisa estranha começou a acontecer com ele. Sentava-se num dos banquinhos e passava horas com o olhar parado em direção a coisa nenhuma. Muitas vezes repetia a mesma tarefa; regar a horta, dez minutos depois de já ter feito isso, além de esquecer se tinha feito as refeições ou não. Pegou a mania de escrever cartas ao Presidente da República e passava um longo tempo preenchendo um grande caderno com sua letra quase ilegível, dando conselhos humanitários ao chefe da nação e pedindo que ele olhasse o povo sofrido do país. Os sintomas pioravam dia a dia e os médicos nada puderam fazer. Foram cinco anos de sofrimento para todos nós, até que um dia encontramos vovô morto na cama. Morreu tranquilamente enquanto dormia.

Não escrevi aqui sobre os outros membros da família porque não lembro quase mais nada. As vezes esqueço meu nome, o nome das pessoas que me rodeiam e o que aconteceu ontem. A única coisa que permanece é a lembrança dele e a certeza que logo também eu vou cair no esquecimento, Pena que eu não tenho um neto pra escrever sobre mim.

 
AMAURI CHICARELLI
Enviado por AMAURI CHICARELLI em 23/05/2013
Reeditado em 27/05/2013
Código do texto: T4304456
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