Feridas (EC)

Ela estava deitada.

A cabeça tonta, as mãos doloridas por amassar pão, os pés sofridos pela artrite, latejantes, e os olhos vermelhos, queimando como fogo. Ah, sim, estava com azia também.

Bem, isso por hora poderia ser resolvido.

Lentamente, levantou-se excomungando qualquer coisa que vinha a sua cabeça. Com as mãos pressionando as costas que também doíam, caminhou vagarosamente até a cozinha. Lá, foi até o armário e abriu a primeira gaveta. Errada. Fechou-a com um estrondo e partiu para a segunda, resmungando. O último sal de frutas brilhava. E ela babava.

Fez o que tinha de ser feito.

Bebeu, dissolvido em água da torneira. Sentiu ânsias. Andando o mais rápido que podia, e isso era um pouco mais rápido do que uma lesma sedentária, foi até o banheiro, agachou-se perto do vaso sanitário, abriu a tampa e enfiou a cabeça lá dentro. Ajudada, em grande parte, pelo cheiro azedo de urina, vomitou com graça, mas sem leveza.

Que merda era aquilo que acontecia com ela?

Luciana, 41 anos, cabelos caindo, quase todos grisalhos. Olhos azuis. Cansados e sofridos. Velha? É, velha.

Que droga de vida tivera. Que droga de vida tinha. Bem, só uma coisinha a salvava daqueles momentos de desespero e depressão. Uma coisinha bem especial.

Como se esquecer do pai? Um homem violento com a mãe, violento com ela, violento com as irmãs. Tivera a pior das infâncias. Pobre, sofrida, fome e sede, frio, hematomas... Tinha... Quantos anos mesmo? 12? Não, um pouco menos que isso. O pai a espancou com gosto depois de chegar bêbado. É, é isso mesmo. Aquele típico caso em que o pai bebe em exagero, chega em casa, bate na mulher, nos filhos, não põe comida dentro de casa... Mesmo assim ela não conseguia odiá-lo. Isso mesmo, tinha 12 anos. Uma surra inesquecível.

A mãe já estava morta nessa época. As irmãs, duas para ser mais exato, um pouco mais velhas que ela, já estavam fora de casa. Luciana vivia sozinha, nunca quisera abandonar o pai. Anos depois, não se lembraria porque ainda amava aquele cafajeste barbudo e cheirando á pinga. O que aconteceu foi que ela, depois dessa surra dos 12 anos, também saiu de casa.

Ela ainda estava relutante. Medo. Tinha medo de que o pai a procurasse, mas isso nunca chegou á acontecer. Ficou sabendo, pouco tempo depois, que o pai fora preso. Duas facadas em uma mulher, algo assim.

Fora do mundo cinza que era a convivência com o pai, fora morar com uma tia. Gorducha, rabugenta, ranzinza, mas uma grande pessoa. Gorducha demais. Tinha o colesterol alto, Luciana ouviu o médico dizer. Tinha uns 15 anos nessa época, as irmãs já maiores de idade, haviam conhecido rapazes e ido embora com eles. A tia morreu. Colesterol mesmo.

Os outros 26 anos foram um borrão.

Morou junto com a irmã mais velha, que a apresentou ao irmão de seu cunhado. Gostou dele, namorou ele e casou com ele. Era gentil, mas bebia também. E existia aquele trauma, o maldito trauma. Luciana tentou convencê-lo a parar, explicou a situação. O marido não entendeu. Na verdade, revelou um lado que Luciana desconhecia. Um lado violento e cruel. Viciou na bebida, ficou de saco cheio da mulher, parece que aprendeu a lutar boxe, e ela virou o seu saco de pancadas.

Nesse meio tempo, nasceu Juliano.

Ela tinha... 26 anos? Vamos ver, ele tem 15 agora, ela 41... É isso mesmo. Ela tinha 26 anos, mas já aparentava uns 40.

Abandonou o marido, que aceitou com muito bom gosto. Desde então, vivia junto ao filho, uma peste, agora com 15 anos.

Ele havia entrado na sala enquanto ela pensava em sua vida. Falava qualquer coisa, tentava chamar sua atenção, mas ela não a prestava. Só refletia o quanto fora infeliz. Uma mãe submissa, um pai alcoólatra e violento, a morte da tia, a indicação de um homem pela irmã, o namoro mais ou menos, o casamento infeliz, e a vida porcaria. Como se sentia em uma história daquelas de romances, em que tudo isso não passava de mera ficção.

Não... Não era ficção. Para ela não. Mas o que isso poderia ter de utilidade? Era uma pessoa infeliz e ferida. E só.

Contente por ter chegado a uma conclusão, resolveu dar atenção para o filho.

- Que porra é essa? – ela gritou.

O chão estava cheio de sangue.

Ele tinha uma ferida gigantesca no joelho...

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Ferida

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Fernandes Carvalho
Enviado por Fernandes Carvalho em 27/05/2013
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