Seu Julio e a Consoada

Eu olhava de quando em quando para o relógio grande da parede, e seus ponteiros negros pareciam travados, como se o homem que controla o universo tivesse parado o tempo. As horas não passavam de jeito nenhum. O calor insuportável da úmida sala, com o ar-condicionado pifado, aumentava drasticamente a minha sede. Abri a gaveta do birô, retirei uma garrafa de água mineral, no entanto, o líquido incolor que preenchia o interior do recipiente não era só água, era água e vodca. Dei uma longa golada, sorrateiramente, e devolvi a garrafa para dentro da gaveta. Suspirei aliviado.

Meus problemas com a bebida eram notórios, eu tentava disfarçar, mas era em vão. Nenhuma forma de enrustir meu alcoolismo surtia efeito. Acabei deixando pra lá. “Foda-se!”; eu pensava. Estava a pouquíssimos dias da minha aposentadoria, pouco me utilizavam na empresa atualmente e eu passava todo o expediente a olhar para a fuça vermelha e carcomida de espinhas do estagiário que sentava a minha frente e fazia de maneira porca as funções que antes eram minhas. A aporrinhação de me sentir desprestigiado só era amenizada depois de alguns bons goles, por isso, eu levava a minha salvadora garrafinha “batizada”, só assim me sentia melhor.

Daqui a dois dias eu faço sessenta e cinco anos, e também encerro meu ciclo nesta empresa. Sairei com um imenso prazer e não terei nenhum tipo de saudade deste serviço em que dediquei toda a minha vida. Sou contador de uma grande fábrica de tecidos. Os números são meus aliados e amigos fiéis. Gosto muito mais deles do que das pessoas. Entretanto, de agora em diante, quero só contar o tempo que levo para esvaziar uma garrafa de uísque, ou um engradado de cerveja, ou mesmo contar quantas taças de vinho eu entorno num fim de semana.

A sirene toca, finalmente cinco horas da tarde. Levanto-me, pego meu paletó e saiu sem me despedir do moleque que um dia me substituirá. Ele percebe meu mau-humor diante de sua presença e faz de tudo para que eu mude minha opinião sobre ele. Trata-me muito bem, é sempre atencioso, mas, não faz as coisas como devem ser feitas, na verdade, ele não faz como eu quero que sejam feitas. Só faz do seu jeito, do jeito “moderno”, “dos dias de hoje”, é assim que ele fala. O filho da puta acha que o que eu faço está ultrapassado, que o que eu sei não serve mais, que o meu modo de trabalhar é antigo, que eu sou uma múmia. “Tá pensando que eu tenho que está num museu ao invés de estar aqui, meu filho?”; eu perguntei uma vez a ele, mostrando toda minha indignação. Ele ficou encabulado e sua cara vermelha ficou ainda mais vermelha, parecia que ele iria entrar em erupção, suas acnes amarelas, inflamadas e nojentas, ficaram ao ponto de explodir. Ele suava e gaguejou tentando se desculpar. “Frangote, isso é o que ele é. Um frangote de merda!”.

Deixei de dirigir a cinco anos, depois que minha mulher faleceu, também por que estou sempre embriagado e não quero causar um acidente. O terminal de ônibus está entupido de gente, consigo ver assim que ponho os pés fora da fabrica. Da firma até a estação rodoviária é menos de cem metros. Dirijo-me ao ponto de táxi. “Desta forma vou à falência”; penso. Mas, quem quer economizar dinheiro na minha idade? Já economizei o que pude.

Desço na esquina de casa. Vou para o bar do Mudinho. Sento. Peço uma Brahma e uma dose de cinquenta e um. Viro a dose. Encho o copo de cerveja e bebo um bom gole. “Ah, tá boa!”, exclamo de prazer. Converso com Mudinho sobre política e futebol. O nome de Mudinho é Clodoaldo, o chamam de Mudinho não sei por que, já que ele fala pelos cotovelos e é um homem de quase dois metros de altura. Lá pelas tantas o papo cessa, o bar enche, ligam a TV para o jogo de futebol. Era quarta-feira. Fico ali ouvindo o burburinho e observando tudo, vendo o jogo, bebendo, virando uma dose e outra, enchendo o copo de cerveja...

Acordei com o cutucão de Mudinho em minha costela, e dizendo: “Seu Júlio, vamos fechar.”. Levanto-me, me despeço de Mudinho: “Boa noite e até amanhã”. Sigo para casa.

Moro no térreo de um pequeno condomínio composto por dois prédios de seis andares com elevador. Resido no bloco A, apartamento 011. Condomínio bom, com um terraço com piscina e salão de festas, bem conceituado, com moradores educados e discretos. Gosto daqui.

Entro no apartamento deixo minha pasta em cima da mesa, e o paletó pendurado na cadeira. A mesa está posta para o jantar, a casa limpa e tudo impecavelmente em seu lugar.

Vou para o quarto, ponho meu pijama e olho-me no espelho. Rio sozinho e me lembro de Jussara, minha velha falecida, ela detestava aquele pijama.

Volto à sala. Tomo a sopa sem muito apetite. Termino, coloco o prato na pia, a panela na geladeira.

Vou para o quarto, pego um livro de Frederick Forsyth na estante. Gosto de livros de ação e das poesias do Bandeira.

Não consigo ler, estou bêbado e enjoado. As letras giram, o livro gira, a cama gira, o quarto gira, o apartamento gira, o prédio todo gira e a sopa sai em um potente jato por minha boca.

O despertador toca às seis da manhã. Levanto-me e piso na poça ressecada de sopa azeda que vomitei no chão antes de dormir. Praguejo contra mim mesmo: “Caralho! Velho burro!”. Vou ao banheiro. Tomo banho e escovo os dentes. A higiene bucal têm sido enervante de uns tempos pra cá. Minhas mãos tremem muito pela manhã, me fazendo bater com a cabeça da escova, do lado sem as cerdas, nas minhas gengivas inflamadas, e isso dói pra burro! O tremor só para depois que dou um grande trago numa Zinebra vinda da Holanda, presente de meu filho que mora naquelas bandas da Europa. Porém, só dou uma bicada na danada após a refeição matinal.

Não vejo meu filho desde que Jussara morreu e não conheço meu neto pessoalmente, só por fotos, ou pelo computador, uma vez por mês nos comunicamos pela internet. O moleque é suíço, ou sueco, ou dinamarquês, ou holandês, não sei bem ao certo. É um garotão muito bonito de oito anos. Quando Jussara partiu pensei que meu filho fosse vir com toda a família, contudo, isso não aconteceu. Veio só. Tenho certeza que nunca darei um abraço em meu neto.

Vou para cozinha. “Bom Dia”; digo a Dionésia. “Bom dia seu Júlio”; Dionésia responde. “Tem uma sujeira para você limpar lá no quarto”; digo. “Eu já limpei tudo durante o banho do senhor”, ela diz. “Ah, obrigado e me desculpe”; agradeço de forma automática, por puro reflexo. Ela nada diz. Dionésia é quase tão velha quanto eu, trabalha com nossa família há muitos anos. Sento-me e sou servido. Como mais por obrigação do que por prazer.

Vou até a cristaleira, pego a garrafa da água ardente holandesa e despejo uma boa dose dentro de um copo e ponho tudo para dentro de uma só vez. As mãos se acalmam como num passe de mágica. O dia começa neste instante. Completo a garrafa de água mineral com vodca. Guardo na minha pasta. Despeço-me de Dionésia e vou para o ponto esperar o coletivo. São sete e quinze da manhã.

Levo quase uma hora até chegar à empresa. O trajeto é pela orla, quase a beira mar. Este tempo me faz refletir e viajar com meus pensamentos, enquanto olho o oceano.

Penso na vida, na morte, em Jussara, no trabalho... O meu profissionalismo é que me faz continuar indo todos os dias para a fábrica. Há um ano meu chefe insinuou que minha presença no escritório era supérflua, e que eu bem que poderia esperar a minha aposentadoria em casa. Jamais faria isso. Sou Caxias e, apesar da minha embriaguez constante nos últimos anos, nunca cheguei sequer atrasado e cumpro todas as minhas obrigações, - hoje quase nulas -, dentro do prazo. Não conseguiria deixar de ir trabalhar e ficar refém da língua ferina de alguns imbecis. A motivação de continuar indo ao trabalho também é alimentada por uma pontada de rancor, por saber que minha presença não contribui em mais nada, e ainda por cima é ignorada pela maioria da diretoria. Tanto faz eu estar ali como não. Pareço um homem invisível. E por isso não dei esse gostinho a eles, e continuei firme, sempre me fazendo ser notado a todo o momento. Comparecendo a todas as reuniões, fazendo apontamentos, expondo opiniões e dando meus pitacos. Faço isso para me sentir vivo, útil, mesmo que esta atitude proporcionasse alguns constrangimentos alheios. “Foda-se”. Agora só falta um dia para este suplício ter fim.

Às vezes me pego contemplativo demais, meio depressivo, apesar da euforia que sinto por me aposentar. Pode ser que essa euforia seja uma pequena brisa otimista anunciando os violentos ventos da solidão que me abarcarão quando eu me pegar sozinho, me olhando no espelho e vendo o reflexo de um velho bêbado e inútil.

Quando fico muito carrancudo eu encho a cara e espanto os pensamentos lastimosos que me põem para baixo. Nunca fui de perseguir avidamente a felicidade. Sempre soube que ela é feita de efêmeros momentos para serem aproveitados ao máximo. A felicidade absoluta é utopia, ou é a morte, eu sei disso, todos deveriam saber disso. Ninguém consegue segurá-la para sempre. É como tentar engaiolar uma nuvem de fumaça, em um instante ela parece estar presa entre as grades, no outro, ela já se foi. Pessoas que não entendem isso e a perseguem vorazmente só encontrarão a frustração, tornando-se, paradoxalmente, pessoas infelizes. Tive poucos momentos de felicidade plena, no entanto, passei longe de ser um sujeito infeliz. Nestes últimos anos me encontro sempre carrancudo.

O ônibus chega ao terminal, são oito e dez, bato meu ponto ás oito e quinze a três décadas. Acho que sentirei falta disso.

A manhã passou ligeira. Entretanto, a tarde se arrastou modorrenta. Meus olhos não desgrudavam dos ponteiros negros do relógio que teimavam em não movimentarem-se. A garrafinha com a água “benta” está quase no fim. Sirene. Cinco horas, táxi, bar do Mudinho, cerveja e pinga, conversa fiada, futebol, goles e mais goles...

Sou acordado, me levanto e me despeço do gigante falador que se chama Mudinho: “Boa noite e até amanhã”.

Chego ao apartamento, deixo minha pasta na mesa de jantar e o paletó pendurado na cadeira. A mesa está posta e tudo está no lugar certo e imaculadamente limpo. Estou muito bêbado. Pego um livro do Bandeira na estante e leio em voz alta e postada:

Consoada

Quando a indesejada das gentes chegar

(Não sei se dura ou caroável)

Talvez eu tenha medo.

Talvez sorria, ou diga:

- Alô, iniludível

O meu dia foi bom, pode a noite descer.

(A noite com seus sortilégios)

Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,

Com cada coisa em seu lugar.

Fecho o livro, vou para o quarto e ponho o pijama que minha falecida mulher tanto odiava. Olho-me no espelho e gargalho. Um riso forte, nervoso, que termina num choro abafado. Amanhã será meu último dia. Deito sem jantar. Contudo, vomito o almoço.