__Não. Dizia ele. __Eu não sou um homem de confiança.
  Ao falar assim seus olhos brilhavam e a gente podia sentir neles uma enorme ânsia de viver. Quase uma declaração de amor à existência.
Quando fui morar naquela rua, ele aparentava ter uns setenta e cinco anos, ninguém sabia ao certo. Ainda não havia sofrido o Acidente Vascular Cerebral, como gostava de falar com todas as letras. Se alguém dissesse que ele havia sofrido um Derrame Cerebral, Alberto ficava indignado. _Não! Replicava com o olhar sério. Ele sofreu um Acidente Vascular Cerebral, nada de derrame ou AVC. Aquilo era para os fracos. Gostava de narrar as dificuldades que teve logo depois da doença: a perda parcial de movimentos do lado esquerdo do corpo, a dificuldade de falar, andar, a luta titânica contra o tabagismo, a cachaça e principalmente contra o torresminho de boteco. Todas essas lutas foram batalhas vencidas com muito esforço e abnegação. Sim. Ele era um homem que reconhecia os erros do passado mas não gostava de dar uma de santo, afinal, nunca fora um homem de confiança.
  Alberto passava grande parte do dia sentado numa cadeira do boteco da esquina. Pedia sempre uma Coca Cola que era servida num copo alto, com uma rodela de limão. Talvez para lembrar dos tempos que podia beber; e que bebia com uma sede invejável. Ficava ali naquela mesa que já se tornara cativa, quase o dia inteiro. Sempre estava acompanhado de algum amigo dos velhos tempos e também de pessoas mais jovens, como eu, que gostavam de ouvir suas histórias que não acabavam mais. Ele parecia entender de tudo; de reatores nucleares a ferraduras de cavalo. E quando ele sentava ali, aquela mesa estava sempre com as cadeiras ocupadas e as risadas eram frequentes. O velho comandava as conversas e os jogos de dominó, damas ou baralho. Era uma unanimidade, exceto por uma senhora que parecia querer demolir o pequeno império do velhote.
  Dona Matilde tinha mais ou menos a mesma idade de Alberto e parecia ter um ódio inexplicável pelo velho. Passava e repassava em frente à lanchonete sempre acompanhada pela neta, que, embora feia de rosto, tinha um belo corpo. Todas as vezes que passava por ali arrumava um pretexto para xingar Alberto.
__Velho desavergonhado. Fica ai contando mentiras.
O velho ria e dava olhares ostensivos para a bunda da moça, deixando Matilde mais enfurecida ainda.
__Cafajeste
  As risadas aumentavam e a velha fazia gestos com a mão fechada em direção ao céu. Ninguém ria dela na verdade, riam da situação.
__Agora dá uma de santa, mas quando era jovem... Nem te conto... E não contava, apesar da insistência da plateia..
 Ele estava sempre com uma bengala na qual se apoiava, pois a perna esquerda parecia ter vida própria e quando andava, a perna fazia um movimento involuntário e súbito. Dava a impressão que ela tentava chutar alguma coisa invisível. A molecada da rua não deixou passar e o velho foi apelidado de Deixa que eu Chuto.
 Algumas pessoas se ofendiam com estas coisas e diziam que ele era politicamente incorreto. Talvez fosse. Mas para aquele velho que foi até a esquina da morte e voltou, essas noções abstratas não tinham mais sentido. Ele sabia que em poucos anos não estaria mais no mundo e dai? Pra que serviriam os eufemismos? Qual seria a importância se o chamassem de defunto, cadáver ou presunto? Ou Deixa que Chuto?
  Fui morar ali pouco antes de ele sofrer o ataque. Era um velho alto e forte, com o rosto vermelho e a barba sempre por fazer. Parecia rir de todo mundo e colocava apelido em todos, não chamava ninguém pelo nome. Apelidou-me de Padre por causa da circunferência careca e lisa na cabeça. Não liguei, já tive apelidos piores. O dono do bar era o Perninha, porque tinha um defeito congênito e uma perna menor que a outra. Ninguém escapava dos apelidos, mas aparentemente ninguém ligava também. Ele era um velho desses “velhos safados” que a gente sempre encontra em botecos antigos, e que têm uma força moral, ou imoral que atrai a todos traduzindo em admiração e respeito.
__Eu não sou um homem de confiança.
  Apesar de “não ser um homem de confiança”, era chamado para resolver as mais intrincadas questões: brigas de marido e mulher, brigas de vizinhos e qualquer conflito na rua e nas redondezas, além de entalar pernas quebradas de gatos e cachorros. Frequentemente ficava atrás dos balcões dos bares a pedido dos donos quando estes precisavam sair; vendia as coisas e cobrava de todos sem exceção; nada de beber de graça, nada de amizades misturadas com o dever. Nunca dava nada a alguém que fosse pedir enquanto estava atrás do balcão, embora nunca tivesse negado uma pinga, um cigarro ou um salgadinho para quem pedisse. Muitas vezes vi moradores de rua pedindo dinheiro a ele para “comprar um pão” e então ele gritava de onde estava.:
__Ô Perninha, dá uma pinga aí pro moço.
 Ele era um homem de confiança, embora ninguém se arriscasse a dizer lhe isso. Mas gostava de aparentar ser mau. Se visse um bêbado chorando na mesa de um bar, o que era frequente, pegava no pé dele fazendo piadas do sofrimento do homem até o próprio bebedor se convencer de que aquilo não era nada, no final das contas, e rir da própria desgraça.
__Nunca mais chorei depois dos sete anos. Gostava de se gabar, mas essa frase foi desmentida pouco tempo depois.
Foi na época de seu aniversário.
  Ninguém sabia quantos anos ele tinha de verdade, pois ele respondia com uma idade diferente cada vez que que lhe perguntavam. Sua casa nessa época estava passando por reformas e então os amigos resolveram fazer a festa de aniversário no bar mesmo. Forraram a mesa de bilhar e cada um ajudou no que pôde para a festa. Todos compareceram, até os donos dos bares vizinhos. Tinha de tudo o que se encontra em botecos; sardinha frita, linguiça, salgadinhos e muita bebida. Estavam todos reunidos e já muito alegres quando a neta de Dona Matilde entrou carregando um pequeno bolo com duas velas em forma de números, colocou no centro da mesa, se afastou e disse.
__Vovó mandou
  As velinhas formavam o número 80 e contornando as bordas do bolo estavam escritas as palavras “Deixa que Eu Chuto”. Todos ficaram na expectativa da reação de Alberto. O velho a princípio parecia ter passado pelo forno, pois o sangue inundou suas faces, em seguida desabou numa enorme gargalhada que contagiou a todos.
  A festa estava em pleno auge quando Perninha, que ia de tempos em tempos à cozinha, voltou trazendo uma grande bandeja de inox que pousou na mesa. A bandeja estava repleta de torresmos fritos na hora. Eram os mais belos torresminhos que jamais algum boteco vendeu. Ainda saia fumaça e o óleo quente ainda fazia estourar pequenas bolhas de ar no couro quase vermelho da carne de porco. Todos se calaram diante daquela maravilha, esquecendo-se de Alberto momentaneamente. Em pouco tempo a bandeja foi atacada por incontáveis mãos ansiosas. Quando finalmente a calma voltou à mesa, alguém percebeu e cutucou seu vizinho com o cotovelo e então todos olharam para Alberto. As lágrimas escorriam pelo rosto do velho que olhava fixamente para os torresmos restantes, que ele estava inapelavelmente proibido de comer.
 DEIXA QUE EU CHUTO
__Não. Dizia ele. __Eu não sou um homem de confiança.
  Ao falar assim seus olhos brilhavam e a gente podia sentir neles uma enorme ânsia de viver. Quase uma declaração de amor à existência.
Quando fui morar naquela rua, ele aparentava ter uns setenta e cinco anos, ninguém sabia ao certo. Ainda não havia sofrido o Acidente Vascular Cerebral, como gostava de falar com todas as letras. Se alguém dissesse que ele havia sofrido um Derrame Cerebral, Alberto ficava indignado. _Não! Replicava com o olhar sério. Ele sofreu um Acidente Vascular Cerebral, nada de derrame ou AVC. Aquilo era para os fracos. Gostava de narrar as dificuldades que teve logo depois da doença: a perda parcial de movimentos do lado esquerdo do corpo, a dificuldade de falar, andar, a luta titânica contra o tabagismo, a cachaça e principalmente contra o torresminho de boteco. Todas essas lutas foram batalhas vencidas com muito esforço e abnegação. Sim. Ele era um homem que reconhecia os erros do passado mas não gostava de dar uma de santo, afinal, nunca fora um homem de confiança.
  Alberto passava grande parte do dia sentado numa cadeira do boteco da esquina. Pedia sempre uma Coca Cola que era servida num copo alto, com uma rodela de limão. Talvez para lembrar dos tempos que podia beber; e que bebia com uma sede invejável. Ficava ali naquela mesa que já se tornara cativa, quase o dia inteiro. Sempre estava acompanhado de algum amigo dos velhos tempos e também de pessoas mais jovens, como eu, que gostavam de ouvir suas histórias que não acabavam mais. Ele parecia entender de tudo; de reatores nucleares a ferraduras de cavalo. E quando ele sentava ali, aquela mesa estava sempre com as cadeiras ocupadas e as risadas eram frequentes. O velho comandava as conversas e os jogos de dominó, damas ou baralho. Era uma unanimidade, exceto por uma senhora que parecia querer demolir o pequeno império do velhote.
  Dona Matilde tinha mais ou menos a mesma idade de Alberto e parecia ter um ódio inexplicável pelo velho. Passava e repassava em frente à lanchonete sempre acompanhada pela neta, que, embora feia de rosto, tinha um belo corpo. Todas as vezes que passava por ali arrumava um pretexto para xingar Alberto.
__Velho desavergonhado. Fica ai contando mentiras.
O velho ria e dava olhares ostensivos para a bunda da moça, deixando Matilde mais enfurecida ainda.
__Cafajeste
  As risadas aumentavam e a velha fazia gestos com a mão fechada em direção ao céu. Ninguém ria dela na verdade, riam da situação.
__Agora dá uma de santa, mas quando era jovem... Nem te conto... E não contava, apesar da insistência da plateia..
 Ele estava sempre com uma bengala na qual se apoiava, pois a perna esquerda parecia ter vida própria e quando andava, a perna fazia um movimento involuntário e súbito. Dava a impressão que ela tentava chutar alguma coisa invisível. A molecada da rua não deixou passar e o velho foi apelidado de Deixa que eu Chuto.
 Algumas pessoas se ofendiam com estas coisas e diziam que ele era politicamente incorreto. Talvez fosse. Mas para aquele velho que foi até a esquina da morte e voltou, essas noções abstratas não tinham mais sentido. Ele sabia que em poucos anos não estaria mais no mundo e dai? Pra que serviriam os eufemismos? Qual seria a importância se o chamassem de defunto, cadáver ou presunto? Ou Deixa que Chuto?
  Fui morar ali pouco antes de ele sofrer o ataque. Era um velho alto e forte, com o rosto vermelho e a barba sempre por fazer. Parecia rir de todo mundo e colocava apelido em todos, não chamava ninguém pelo nome. Apelidou-me de Padre por causa da circunferência careca e lisa na cabeça. Não liguei, já tive apelidos piores. O dono do bar era o Perninha, porque tinha um defeito congênito e uma perna menor que a outra. Ninguém escapava dos apelidos, mas aparentemente ninguém ligava também. Ele era um velho desses “velhos safados” que a gente sempre encontra em botecos antigos, e que têm uma força moral, ou imoral que atrai a todos traduzindo em admiração e respeito.
__Eu não sou um homem de confiança.
  Apesar de “não ser um homem de confiança”, era chamado para resolver as mais intrincadas questões: brigas de marido e mulher, brigas de vizinhos e qualquer conflito na rua e nas redondezas, além de entalar pernas quebradas de gatos e cachorros. Frequentemente ficava atrás dos balcões dos bares a pedido dos donos quando estes precisavam sair; vendia as coisas e cobrava de todos sem exceção; nada de beber de graça, nada de amizades misturadas com o dever. Nunca dava nada a alguém que fosse pedir enquanto estava atrás do balcão, embora nunca tivesse negado uma pinga, um cigarro ou um salgadinho para quem pedisse. Muitas vezes vi moradores de rua pedindo dinheiro a ele para “comprar um pão” e então ele gritava de onde estava.:
__Ô Perninha, dá uma pinga aí pro moço.
 Ele era um homem de confiança, embora ninguém se arriscasse a dizer lhe isso. Mas gostava de aparentar ser mau. Se visse um bêbado chorando na mesa de um bar, o que era frequente, pegava no pé dele fazendo piadas do sofrimento do homem até o próprio bebedor se convencer de que aquilo não era nada, no final das contas, e rir da própria desgraça.
__Nunca mais chorei depois dos sete anos. Gostava de se gabar, mas essa frase foi desmentida pouco tempo depois.
Foi na época de seu aniversário.
  Ninguém sabia quantos anos ele tinha de verdade, pois ele respondia com uma idade diferente cada vez que que lhe perguntavam. Sua casa nessa época estava passando por reformas e então os amigos resolveram fazer a festa de aniversário no bar mesmo. Forraram a mesa de bilhar e cada um ajudou no que pôde para a festa. Todos compareceram, até os donos dos bares vizinhos. Tinha de tudo o que se encontra em botecos; sardinha frita, linguiça, salgadinhos e muita bebida. Estavam todos reunidos e já muito alegres quando a neta de Dona Matilde entrou carregando um pequeno bolo com duas velas em forma de números, colocou no centro da mesa, se afastou e disse.
__Vovó mandou
  As velinhas formavam o número 80 e contornando as bordas do bolo estavam escritas as palavras “Deixa que Eu Chuto”. Todos ficaram na expectativa da reação de Alberto. O velho a princípio parecia ter passado pelo forno, pois o sangue inundou suas faces, em seguida desabou numa enorme gargalhada que contagiou a todos.
  A festa estava em pleno auge quando Perninha, que ia de tempos em tempos à cozinha, voltou trazendo uma grande bandeja de inox que pousou na mesa. A bandeja estava repleta de torresmos fritos na hora. Eram os mais belos torresminhos que jamais algum boteco vendeu. Ainda saia fumaça e o óleo quente ainda fazia estourar pequenas bolhas de ar no couro quase vermelho da carne de porco. Todos se calaram diante daquela maravilha, esquecendo-se de Alberto momentaneamente. Em pouco tempo a bandeja foi atacada por incontáveis mãos ansiosas. Quando finalmente a calma voltou à mesa, alguém percebeu e cutucou seu vizinho com o cotovelo e então todos olharam para Alberto. As lágrimas escorriam pelo rosto do velho que olhava fixamente para os torresmos restantes, que ele estava inapelavelmente proibido de comer.
 
AMAURI CHICARELLI
Enviado por AMAURI CHICARELLI em 13/06/2013
Reeditado em 16/06/2013
Código do texto: T4339327
Classificação de conteúdo: seguro
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