"MORRO DO MORRO" - Conto Dois

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“Morro do Morro”

Conto Dois

“O Balançar do Morro”

Voltei para a casa, sentei-me a beira da cama e tremi, por que aquele homem não era demais pra tamanha euforia. Homem escuro como cacau processado, ginga incrível, o seu balançar era como as ondas do mar, um ir vir sempre precedentes, suave e delirante. Sua educação era primorosa.

Foi depois desse baile que nunca mais tirei – o da mente, Hidalgo era seu nome, mãos afáveis e grandes, linguajar lindamente cortês, seu olhos falavam sem hesitação, seus lábios, largos e suculentos, eles me levaram às alturas. Naquele samba, foi ali que o conheci, homem alto, roupas leves e simples, nada atlético, magro, mas firme. Seu balançar no samba cortejava a todos, homens, mulheres, velhos, novos. Diziam que ele dançava pros orixás, pois todas as vezes que ele pisava descalço no terreiro do samba, ele batia cabeça, fitava o firmamento, agradecia e sem nem perceber, seus ombros tremulavam de forma vagarosa. Assim o som dos violões, atabaques, pandeiros, caxixis, pele de gato, vulgo tamborim, começavam levemente a dar o compasso do “santo”. Os outros observavam tal ação enquanto a “incorporação” se finalizava. Todos sentiram a paz e partiram em direção do samba compassado, agora mais rítmico, gostoso de, se sambar.

Arrastei o saião até os joelhos, pulei ao seu lado, e como mágica o Nego tomou minha mão, antes pediu licença, e me levou ao seu espaço. Senti sua mão me conduzir, me deixei levar e sem pensar, girei no mesmo lugar, o Nego me rodeou com o samba massado, bem devagar, sem preocupação. Foi quando ele ergueu de leve sua cabeça, eu apenas vi seus dentes, sorriu pra mim, mais um pouco, meia face se via, seu sorriso continuava intacto, por mais seus olhos negros como a noite fitaram minh’alma, tremulei mais do que imaginava, nunca havia me ocorrido aquilo, senti minha direção mudar, o Nego me puxara agora para fora do terreiro, fui arrastada até a um ponto de onde não conhecia aquele velho morro.

Aquele momento foi apavorante, não sabia como reagir, se gritava, corria, sorria, seguia. Paramos, repentinamente fui envolvida em seus braços, sua respiração agora me deixava sem ação, seu rosto estava de fronte a meus olhos, penetrei novamente naquela negridão toda, coisa que me deixara em paz. Nunca me senti assim. O Nego se afastou um pouco, com o ar de bom moço, eu o puxei pra mais perto de mim, beije-o sem proceder, causa e efeito. Deixei-me levar pelo momento, foi recíproco, suas mãos agora afagavam minhas costas, envolvi meus braços acima de seus ombros, ali senti o porto seguro que minha mãe me falara a tanto. Eu já tinha certa idade, e como de praxe, os “outros” do morro começavam a dizer asneiras sem tamanho. E agora aquilo, longe do “for all”, daquele ritmo envolvente, fui envolvida no balançar do corpo do Nego, ele como por encanto, me deixou os lábios ardentes, aquele movimento de lábios, aquele jeito, só ele soube fazer aquilo. Há tempos não sentia aquilo, nenhum outro me fez levitar de tal forma, de puro, sentimento.

Afastei-me, e ele sem surpresa disse:

- Acalme-se, tenho tino de que o que fizemos é errado, mas meu coração não deixará isso assim, não vou deixar a oportunidade pra depois, e por isso te digo, não vai ficar aqui... – ele com o olhar doce.

- Jamais deixaria um “Preto” desse jeito se afeiçoar de meu balançar, o que na verdade foi de revés, foi você quem me bailou, e de forma incontestável. Você fez a paz que eu busco à tempos, e não, não vai ficar só aqui! – respondi-lhe apressadamente.

Os dias se passaram e aquela noite não saía de mim, senti dia após dia, repassei cada detalhe, desde o minuto em que via as estrelas no céu, até o ir de sua sombra em meio aos casebres do velho e lindo morro, depois daquilo, nunca mais o vi por estes lados.

Parei na Dona Rita, a bolera do lado de cá pra pegar uns pães:

- Bom Dia Dona Rita, como tens passado? – eu feliz em vê-la.

- Bom Dia “Sá” moça, bem e com você? – ela com o sorriso da “Nega Velha”, como de todas as outras, apaixonante.

-Preciso de 5 pães, a mãe pediu, por favor! – eu estendendo a mão com os “réis” escassos do trabalho.

- “Tão” aqui minha menina “Pretta”! – ela sem demora.

Mas antes que pude-se sair, Dona Rita segurou o pacote e me fitou de corpo inteiro, dizendo:

- “Fia”, não que eu queira entrar em seus entreveros, mas dizem no morro que o “Pretto” Hidalgo lhe fez cortês naquela noite do Samba, não foi? – ele visando o fundo de minha alma.

- Eee-e-e-e ... eu não sei do que a “sinhora” está falando, nem sei do que se trata – eu,tremula com a pergunta efusiva.

- Desde já lhe digo, o “Pretto” é trabalhador, menino que se fez por meio destas vielas e por nossas mãos, mas pelo que soube os “home” tão no rastro d’ele, e não se sabe o porque ao certo. Cuidado, o “Pretto” é bem conhecido pelo morro e por muitos, mas não se sabe de onde ele é e de quem o “fez” em tempos passados. Ele surgiu como por encanto no meio dos “barraco”, cuidado menina “Pretta”, vemos cara, mas o coração é coberto, cuidado – ela soltando o pacote.

- Sim senhora! Seguirei seus conselhos. – eu consentindo com o gesto de sim ao baixar a cabeça pra receber o passe da “Preta Velha” Dona Anita.

Sai dali como se tivesse perdido o rumo, segui sem direção certa, pois aquelas palavras atingiram o que eu mais temia, que era o meu medo de viver. Por diversas vezes eu não me deixei levar por qualquer arrastar de asas dos “galinhos do morro”, não que a maior parte dos cortejos eram feitos a mim, mas a maioria só queria se aproveitar de meus dotes, de minha compleição, que daquele lugar, os “outros”, julgavam ser o mais harmonioso. E depois de tantos galanteios, um simples e verdadeiro me encantou, mas se desfez com aquelas palavras da Dona Anita:

- Será que aquela educação toda, é mascarada por um homem de má intenção? Será que esse “Pretto” vale um esforço? – eu, agora, com as dúvidas que eu não tinha com todo aquele encanto do primeiro encontro.

Sem perceber, trombei um homem alto, esguio e com um cheiro insuportável de cigarro e uísque barato. Um odor do qual eu conheci de imediato. Voltei os olhos para a certeza, era ele, o homem do qual senti enjoou desde a primeira vez que ele estava no samba. Por base de 3 meses, ele vinha de onde não sei, sambar o samba mais feio e mais morto já visto, não balançava como o morro, não balançava como o Hidalgo. Este vinha me cantar com um linguajar de malandro 171. Seu nome era Magno, o seu bafo de “cocada boa” o denunciava.