O caso da coisa rara

Abreu, deitado em sua confortável cama, ainda conseguia refletir sobre alguns acontecimentos que lhe haviam ocorrido recentemente. Conduzia uma vida sossegada até então. Era um homem ativo, bem sucedido econômica e profissionalmente e bem conhecido na cidade de Capim Grosso, interior da Bahia, onde morava com sua esposa e duas filhas. Tinha um grande círculo de amizade, era sempre prestativo às pessoas que lhe vinham em busca de ajuda financeira ou de algum conselho. Porém já eram duas horas da manhã e Abreu não conseguia dormir. Virou-se ao lado e observou como sua esposa dormia angelicalmente. Levantou-se, foi até à cozinha, tomou um copo de água, depois se adentrou ao quarto de suas duas filhas, contemplou-as com carinho e chorou, chorou ininterruptamente. Foi um choro chorado para dentro, calmo e sereno. Ao perceber que lhe vinham duas gotas de lágrimas aos olhos, conteve-as e dirigiu-se até a varanda de sua casa. Comtemplou o horizonte, engolido por uma noite escura, tranquila, linda e erma. No entanto Abreu ainda compreendia que no meio daquela aparente tranquilidade havia agitação, agonia, gritos de desespero e dor. Sussurrou algumas palavras incompreensíveis, voltou-se para si, colocou as mãos sobre a cabeça e percebeu instantaneamente que lhe ia embora, paulatinamente, o juízo. Suas palavras não eram capazes de expressar, mesmo que de longe, o pensamento. Naquele cérebro maduro que antes pululavam grandes ideias, conselhos sábios, crescia um mal, um mal que lhe parecia apagar tudo o que vivenciou e construiu ao longo de seus cinquenta e cinco anos de idade. Naquele momento, ele se deu por vencido: estava certo o diagnóstico apresentado por seu médico no mês anterior. Ao tentar buscar em sua vaga memória o prognóstico, esqueceu-se de si por completo. Duas semanas depois, a morte lhe veio reclamar o direito. Ontem o pobre homem foi enterrado no cemitério Jardim das Maravilhas Celestes, na parte baixa da cidade, lugar onde nasceu, viveu, procriou e morreu.