O estrangeiro

No sonho eu era um jornalista americano acompanhando touradas na Espanha. Apaixonara-me por uma nobre inglesa que cuidara de mim quando me feri na guerra. Por causa dessa lesão, que me deixou impotente – de maneira irreversível –, nós nunca poderíamos ficar juntos. Dentro do táxi ela se aninhava em meus braços e eu suspirava longamente, expelindo a fumaça de meus pulmões. Ela me perguntava “o que houve, querido” e eu lhe dizia “estou pensando no jornal e no trabalho acumulado em minha mesa”. Ela, se aconchegando mais em meu peito, miava “ora, mantenha seus problemas longe de nós, meu amor”, ao que respondi “na minha atual situação não é tarefa das mais fáceis”. “Mas querido”, reconciliadora, “aqui o sol também se levanta” – filosofou – e eu, jogando o cigarro pela janela, amargurado, chorei ao dizer “menos o meu pau!” Acordei assustado, a pensar em rifles e suicídio.

Eu nunca entendi como “Before the sunrise” tornara-se “O sol também se levanta”. É uma crueldade. Eu até simpatizava com o mocinho, aquele criatura letárgica e atônita, de poucas palavras e despida de julgamentos de valor, mas conforme me embrenhava livro adentro, tornava-se cada vez mais difícil torcer por ele. Mas torcer pelo quê, por sua pronta recuperação? Impossível. Pensei, após longo suspiro: melhor morrer como homem. Ou como touro?

O mormaço do verão me deixou sonolento. Areia por toda parte, da cabeça (passando pela minha sunga, cheia como uma betoneira) aos pés, avermelhados e discretamente inchados, como os de um velho bêbado. Eu li o Hemingway, ele ainda jaz molenga em meu peito. Meu peito que agora exibe tatuado um retângulo branco sobre fundo vermelho-pimentão, salpicado de pêlos fartos e encaracolados. Sempre fui muito peludo e avesso à curtição do sol, mas hoje não pude resistir ao assédio da turma. Fui arrastado sem piedade à praia mais próxima de nossa casa, alugada especialmente para o carnaval, essa manifestação popular de gozo prolongado, em contrapartida ao coito interrompido do restante do ano ao qual vem atrelado. Não, não sou folião enrustido nem entusiasta do samba-canção (eu nunca entendi essa de samba-canção: para mim é roupa de baixo, e só). Apenas reconheço a derrota de todos os anos ao admitir que por vezes também me sinto tentado a sair da toca. Apesar de que, tudo o que eu mais desejo agora, com o sol a me fustigar, deixando sua marca cancerígena sobre minha pele, é hibernar até o inverno.

Temporada aberta à caça de paixões intermitentes e bebedeiras homéricas. “Minha aparência não é das melhores”, eu dizia a Gilberto antes de partirmos, três dias atrás. Pareceu-me uma boa justificativa para escapar da testosterona concentrada em rapazes de atividade sexual bissexta. Rapazes, rapazes, aproveitem, não queiram chegar a minha idade neste estado de espírito em que me encontro (a verdade é que nascemos quase todos no mesmo ano, mas isso não tornava o conselho menos importante). Não os fiz mudar de idéia quanto a minha presença, que seria um estorvo, garanti, tentando, num esforço final, persuadi-los de levar-me junto numa viagem demorada e cansativa onde fatalmente eu acabaria por vomitar dentro do carro. Eles aventaram com a possibilidade de fotografar-me babando enquanto eu dormisse. Tive que ceder, pois alguém tem que.

Ok, cá estou, a respirar a brisa marítima, ao longe a curva da areia castigada pelas ondas do atlântico, o mar gelado a arrepiar os pelinhos dourados no corpo esbelto das mocinhas. Ao fundo, uma igrejinha no topo de um montículo, quase um istmo. Vejo tudo através de lentes fumê, no exato formato modernoso dos óculos escuros próprios da rapaziada – e de Gilberto, dono desta aberração, torrando ao sol igual a mim, só que por inteiro. Espreguiço gostoso na cadeira de Jaiminho. Observo-o poucos metros adiante num jogo de frescobol, trocando passes mais ou menos fortes com Emerson. Penso: somos quatro rapazes, nenhuma garota e pelo menos três libidos prontas para entrar em ebulição. Três, porque eu sempre me virei muito bem sozinho (podem me chamar de onanista, é verdade).

Ontem à noite queríamos barbarizar (veja só). Pusemos nossas melhores roupas – bonés, camisetas apertadas, bermudas de estampado extravagante, sandálias obscenamente caras e/ou tênis enormes em relação aos nossos pés (preço igualmente constrangedor) – e permanecemos parados, encostados a um carro, a escrever em seu capô “me lave”. Conversávamos sobre as garotas, aos berros. Axé, funk e samba sobrepunham-se às nossas veleidades sexuais. Eu pensava em Santana, em Hemingway, em Carminha (na ordem inversa), só interrompendo o fluxo dos devaneios para cutucar Gilberto e berrar “olha que rabão!”. Eu estava com os óculos de grau, pois sentia que eles me destacavam. Tinha a impressão de ser mais importante, mais inteligente, porém menos desenvolto e expansivo do que gostaria. Os outros três pareciam aproveitar o clima melhor do que eu, àquela altura já meio bêbado e enrolando um pouco a língua.

Olhei em torno, devagar, como se ouvisse o chamado selvagem. Era chegada a hora de cumprir minhas obrigações de jovem solteiro disponível. Sim, eu teria que caçar com o restante do bando, inaugurar nosso covil e acasalar-me com uma daquelas fêmeas para, no dia seguinte, exibir-me portentoso diante às outras (bestas) feras, carentes de cópula, e ratificar minha posição de número um da matilha. Mas como deveria fazê-lo? Terminado o breve giro de calcanhares, encarei meus companheiros e tentei enxergar neles suas reais intenções para aquela noite. Jaiminho é o único de nós que se manteve abstêmio mesmo chegando aos dezoito. Emerson há poucos meses revelou-nos sua homossexualidade . Gilberto foi quem perdeu a virgindade primeiro. Vi meu cabelo em pé pelo reflexo no vidro do carro em que rabiscávamos na poeira. E foi isso.

Acenamos de nossa mesa para o jovem toureiro. Ele bebia com seus patrícios e recebia tapinhas nas costas pelo desempenho da última tarde. Todos olhavam com admiração o diletante de tauromaquia, alto, delgado, elegante, sorrindo timidamente, porém sem falsa-modéstia. Ela queria conhecê-lo pessoalmente, não conseguia esconder seu repentino interesse pelo rapaz (“menos o meu pau!”).

Aqui na praia: ah, o corpo esbelto das mocinhas...

Ainda na praia: tive um princípio de insolação, só pode ser. A bolinha de frescobol num ir e vir, o estampido seco das raquetes em contato com a borracha, alguns bramidos de esforço de Jaime e Emerson, e eu pensando o que é melhor? ser um velho pescador cubano com má sorte ou um ex-soldado auto-exilado impotente? Dou uma risadinha, de olhos fechados, curtindo os raios ultravioletas.

Noite passada, na praça: ao vir do mictório (=beco discreto) encontrei Beto e Jaiminho rindo, o dedo apontado para o outro lado da rua. É que Emerson fora comprar cigarros e uma garota passou-lhe uma cantada (eu nunca entendi esse negócio de “dar mole”). O coitado não sabia como lhe explicar que era gay. Olhava-nos com cara de súplica da outra calçada, enquanto nós fazíamos sinal de positivo, caras e bocas, movimentos com os quadris et alii. A moça gesticulava e gesticulava, punha a mão em seu ombro, acariciava-lhe o peito, imitava-lhe o olhar de súplica, mas não como quem pede auxílio, como quem pede beijos&abraços etc. etc. O pobre Emerson era um fraco e por isso sucumbiu. Tivemos a honra de presenciar a primeira recaída de sua curta carreira e também o desprazer de notar que o primeiro de nós a sair com uma garota no carnaval era veado. Isso aumentava ou diminuía nossas chances?

Eu não gosto desta época do ano. Menos ainda de ser atingido em cheio por uma bolinha de borracha azul. Por isso ela vai parar na água. Ouço os zurros de aborrecimento dos dois boleiros branquicelos. “Que negócio é esse, agora vai buscar”, fala o Jaime. Gilberto nem se mexe, estirado sobre a toalha ao meu lado, untado de bronzeador. “Vai à merda”, eu digo. Emerson calmamente tira a camiseta e entra no mar agitado. Eu também entraria sem chiar se participasse de competições oficiais de natação feito ele. Os pais o puseram numa escolinha aos seis anos por causa da bronquite. Desde sempre foi o atleta da turma. Ele nada lentamente na direção da bolinha, sem perdê-la de vista. Vence as primeiras ondas, mergulha sob as maiores para subjugá-las e já está fora da arrebentação, dando longas e bem calculadas braçadas, respiração unilateral, olhos abertos. Eu devia jogar beisebol. A bolinha está longe. Ou a maré a está levando.

Emerson, nosso campeão, acabara de nos derrotar em nosso próprio jogo. A garota com ele, enorme: só peitos e coxas, e nádegas (“olha que rabão!”), aquilo tudo pendurado em seu pescoço, com os lábios pressionados contra os seus, a língua na sua. Ele até que se saiu bem. Foi uma representação esplêndida. Ou ele não está assim tão seguro quanto ao time em que joga. Talvez jogue nos dois. Eu só queria saber de Carminha. Estava ansioso para lhe falar. Enquanto Gilberto e Jaiminho meditavam, preocupados com a ejaculação precoce, acendi o primeiro cigarro da noite e expeli com força sua fumaça de meus pulmões, feito Barnes, misturando-a ao sereno da madrugada.

Resolvemos perambular pela cidade. Não havia muita coisa para se ver, além das garotas, claro, mas era zanzar por aí ou continuar na primeira fila conferindo a performance de Emerson (impecável). Encontramos Bernardo e mais alguns amigos poucos metros adiante, bebericando batidas de frutas num quiosque. Carmem estava com eles. Vestia pouca roupa, como sempre, uma blusa vermelha apertada, realçando os seios, uma mini-saia jeans e tênis sem meias. Parecia olhar através de mim, eu não existia para ela. Bernardo parecia estar se divertindo, não parou um minuto de mostrar os dentes, com aquela armação metálica que o fazia despejar perdigotos à la carte. É um gordo rico que adora falar de viagens e carros. “Se um dia você for à Itália”, disse isso e olhou para mim, “não fica espantado com os palavrões, não, é a coisa mais normal do mundo. Por exemplo, tudo pra eles é cazzo, cazzo isso, cazzo aquilo, e eu achava estranho todo mundo falando cazzo pra mim, o tempo todo, mas lá é normal, quase não chega a ser palavrão”. Eu perguntei “e quer dizer o quê, então”, e ele respondeu “caralho”. “Pra mim caralho quer dizer caralho em qualquer lugar, você não sabia?”, acrescentei. Jaime pigarreou, Gilberto deu uma risadinha abafada; Carmem sequer piscou. Bernardo achou melhor mudar de assunto: falava de carros agora. “Vocês sabiam que Pajero quer dizer punheta?” Eu não o detestava, mas às vezes me enfastiava de todo aquele falatório. Bom mesmo foi vê-lo se borrar de medo dos cães de Carminha no dia em que fomos juntos visitá-la. Eu o encontrei no clube e, en passant, perguntei por sua prima. Convidou-me para irmos juntos vê-la em sua casa para que eu mesmo conferisse. Tive medo também, mas não me aterrorizei como ele, que parecia querer chorar quando os cachorros se debateram contra o portão, na verdade apenas animados com nossa presença. Voltamos para junto de Emerson.

“Será que a gente pode conversar”, perguntei a Carmem. Eu a puxei pelo braço de leve, apertando sua carne macia e respirando fundo para sentir o perfume de seus cabelos. “Não”, desvencilhou-se de mim, fuzilando-me com o olhar. Bernardo perorava, vigiando-nos de esguelha, agora dava aula sobre calotas e painéis com néon, nada sexual desta vez. Certo, eu não agradava a ninguém no momento, mas tentei prevenir a todos de minha impopularidade entre os jovens. “Gauche”, eu dizia, “é isso que eu sou. Por que não ficamos em casa e ligamos para umas prostitutas?”, propus a uma semana do carnaval. Todos riram e marcaram o dia da viagem. Mas eu falava sério. Teria sido mais divertido.

Emerson já está há uns dez minutos dentro d’água. A maré subiu nesse ínterim e ele ficou preso na correnteza. Acena para nós, mostrando-nos a bolinha azul, e nós também acenamos de volta, disfarçando a preocupação e já pensando em acionar um salva-vidas. Com o mar agitado a praia está vazia, algumas garotas pegando sol, uns ambulantes andando em giro e só. Nos entreolhamos, decidindo em silêncio o que fazer, se devíamos nos alarmar, arriscar nossas vidas mergulhando no oceano bravio para retirá-lo já inconsciente ou continuar acenando. Acenamos, ele respondeu com outro aceno, já não está tão distante. “Ele é atleta, não é, vai ter câimbra porquê?”, minimiza Jaime, “tem força nos braços pra enfrentar a arrebentação”. “Ok, concordo, só fiquei preocupado com a presença de um cadáver entre nós, mas como ele é um peixe, tudo bem, vamos só olhar e esperar para ver se ele se afoga ou não”, aceito resignado. “O pior que pode acontecer é a gente ter que fazer respiração boca-a-boca nele”, Gilberto diz. Eu vi muito bem como ele se saiu a respeito ontem.

A loura prometera voltar. Perguntou onde ficava a casa que alugáramos, disse que passaria por lá para ver se estava tudo em ordem conosco. E deixou claro que preferia visitar-nos à noite, “quanto mais tarde, melhor”, frisou bem essa parte. Despediu-se de Emerson despenteando seus cabelos, tamanha a sofreguidão do colante que lhe aplicara – ok, “colante” é antiquado; eu deveria ter dito beijo “francês” ?. Depois, ao vê-la afastando-se e misturando-se à multidão, olhou-nos muito sério, e estávamos sérios também. Nenhum de nós tocou no assunto. Ele estava confuso. Mas veja, eu estaria igualmente confuso em seu lugar. “Papai, mamãe, sou gay, mas uma mulher maravilhosamente gostosa decidiu que quer trepar comigo em breve e eu acho que fiquei de pau duro” (“menos o meu pau!”). Seria esse um pedido de desculpas ou uma legítima expiação, uma mea-culpa? “Ok, ok, falha nossa, meu negócio é mulher” – estaria admitindo a precipitação com a qual se lançara à nova empreitada? Visivelmente abatido, virou-se, entrou no bar e pediu os benditos cigarros.

Bernardo assobiou do quiosque. “Vocês não querem vir com a gente?” Iam para um bar próximo à estrada, quase na saída da cidade. Deixamos o carro em casa por via das dúvidas, ninguém queria dirigir depois de beber a noite toda. “Vamos, tem lugar no carro da Roberta”, insistiu Bernardo. Olhei para os rapazes implorando para que fôssemos todos, lá eu arranjaria um jeito de ficar a sós com Carminha e me explicar. Eles entenderam o recado. Entramos no carro da tal Roberta, enquanto Carmem foi com Berni e mais duas garotas no outro. Jaime, Beto e Emerson foram no banco de trás, os sacanas, e eu tive que ir na frente com a garota. Seguimos em silêncio o carro-chefe até nosso destino, o bar Limite.

Acabo de ver nosso herói sendo alvejado por uma vaga traiçoeira, após ter vencido a arrebentação. A onda rola, rola e rola, seu corpo submerso a rolar junto, arrastado pela água. Ele demora a dar sinal de vida. Enquanto nós rimos, ele pode estar afogando. Talvez não haja mais sinal de vida. A bolinha azul está perdida.

Nossa motorista era interessante. Não havia indícios de vaidade nela. Usava o rosto limpo e no corpo, roupas discretas; nada realçava sua beleza natural. Tinha os olhos fixos na estrada, uma segurança invejável ao volante. O semblante compenetrado me intimidara, eu não conseguia pensar em algo espirituoso para dizer. O curto trajeto foi comprido em silêncio.

Saltando do carro, exagerei um pouco demais na força ao bater a porta e fui prontamente repreendido pela ruiva, “devagar aí, machão”. Ora, ora, “machão”. Havia algo de suspeito naquele protesto. Seria eu só bolas, nenhum cérebro, é isso o que significava ser “machão”, ou ela talvez fosse lésbica e aquilo nada mais era que uma ponta de ressentimento em relação ao meu biótipo, excepcionalmente compatível com minha condição heterossexual? Idéia cretina, a minha. É que sou mestre em criar situações absurdas em momentos de crise criativa, quando sei que deveria dizer algo que demonstrasse minhas qualidades como ser pensante. Mas a verdade é que quase sempre erro a mão, e faço papel de porco chauvinista, burguês alienado ou crítico de porra nenhuma. No mais dos casos, fico calado e passo por sério, observador e compenetrado. Passaria também por hipócrita, se concordasse com os adjetivos abonadores.

Bem, aí está. Ele encontra-se desacordado. Melhor, imóvel, porém aparentemente cônscio. Braços e pernas abertos sobre a areia, bancando a estrela-do-mar, os olhos fechados. Os nossos estão muito abertos. O que fazer? “Emerson. Emerson. Fala alguma coisa”, imploro. Gilberto, agora assustado, passa a mão no rosto, como quem diz em voz baixa “putaquepariu”. Jaiminho ajoelha próximo ao corpo, ainda inerte. Inclina-se sobre o peito de Emerson, “ele tá respirando”, diz, meio pateticamente. Alguns minutos de indecisão perpassam por sua mente. Talvez tente se lembrar das aulas do terceiro semestre de odontologia. O que um dentista poderia fazer por um afogado, isso eu não sei, mas Jaime é o que mais se aproxima de um médico nesse momento. Depois de alguns minutos de reflexão, nosso Dr. Jivago pega no pulso do paciente, desajeitado, procurando pela veia, a “bailarina da vida”. De repente, Emerson abre os olhos, dá um forte puxão no braço, olha para nós e ri. E ri. “Mas que puto”, diz Jaime, tremendo. Eu rio junto. Gilberto está sério, mas com vontade de rir também, só que não ri: “O que é, queria uma respiração boca-a-boca, é?” De novo essa piada? Ninguém mais ri.

“Esse lugar deveria se chamar Noctívagos”, eu disse a Roberta, timidamente. “Só se isso fosse um café de esquina”, rebateu a garota ruiva. Ela sabia do que eu estava falando? “Mas o rosto das pessoas aqui me lembra as de Hopper” , insisti, em minha exibição gratuita de conhecimentos inúteis e inteligências afins. “Não vejo graça em NIghthawks. Boulevard of broken dreams é mais interessante. Além do mais, prefiro Rockwell” , disse com desdém (ela realmente sabia do que eu estava falando). Eu também adoro Rockwell, mas aquela arrogância me irritara. Apenas eu tenho o direito de ser arrogante. “Que gracinha”, provoquei, “a menina em frente ao espelho?”. “Não”, respondeu sorrindo, “o menino na loja de doces”. Certo, eu a subestimei. São esses óculos. Eu os ajeito no rosto, ergo a armação com o dedo médio, faço com que ela escorregue pelo nariz em direção aos olhos. Esse é o cacoete. Se você faz assim com uma certa insistência, enquanto fala pausadamente, à sottovoce, saiba que esta é uma demonstração explícita de que você se considera melhor do que seu interlocutor, e que não raro ele também sofre de algum problema de vista. No caso em questão, Roberta enxergava muito bem, a ponto de se divertir às minhas custas. Se eu era bom, em minha sapiência alfarrábica, ela parecia ser ainda melhor, e essa expectativa encheu-me de melindres.

Carmem continuava a me ignorar e, admito, brilhantemente. Eu já quase acreditava ser um espírito desencarnado, uma entidade fantasmagórica e intangível, presa entre o mundo dos vivos e dos mortos, tentando desesperadamente encerrar minha participação como ente humano, concluindo algum assunto pendente em vida. Se ela fosse a Demi Moore, estaria chorando por mim. No entanto, sequer me olhava. Os outros à mesa nada percebiam do clima unilateral de hostilidade que havia entre nós; eu, torcendo por um armistício e ela, retaliando com sanções meus recentes deslizes. Fiquei quieto, a observar o desempenho de meus amigos. Estavam se divertindo. Emerson e Gilberto dividiam as atenções de Cíntia, uma das amigas de Bernardo. Este fazia rir Carmem e Jaime, lembrando dos tempos do cursinho de inglês. Roberta falava com a outra garota cujo nome eu fiquei sem saber. Eu sobrara. Éramos cinco(?) homens e quatro mulheres. Mas eu não figurava no páreo, marginalizado como estava. Quase igual ao primeiro dia numa escola nova. Você cai de pára-quedas, procura uma carteira vazia no fundo da sala, senta e aguarda o professor chegar para a aula. Enquanto isso seus novos colegas, que já se conhecem, ignoram você, “o cara novo”. É assim até que você tome a iniciativa de se enturmar ou algum evento de natureza grotesca ou peripatética se encarregue de lhe fazer as honras. Daí você se torna o cara legal, o idiota da classe, o bobo da corte, o cidadão suíço ou o indigente, porque sua presença não faz diferença. Você falta à aula e ninguém se dá conta. Eu me senti assim naquela mesa enorme cheia de tulipas de chope suarentas, travessas vazias de batatas-fritas e cinzeiros de plástico que transbordavam guimbas. Tirei os óculos, para me livrar do ar blasé, apaguei o cigarro, que eu apenas trazia entre os dedos sem tragá-lo e me juntei à juventude circunstante. Eu tenho vinte e um anos.

“Foi mal, eu me esqueci”, desculpa-se Gilberto. A piada sobre o boca-a-boca foi infeliz. Ora, não tem problema, é a cara que Emerson faz para nós, vocês não têm culpa, deve estar pensando. Não somos culpados mesmo. Bem, eu sou, por fazê-lo cair no mar num dia de ressaca (ainda que seja uma ressaca moderada; nada que se compare a minha, contudo). “Que porra é essa na sua sunga”, pergunta Jaime, e nós rimos. Emerson tira a bolinha dentre as próprias bolas. Durante o “resgate” ninguém percebeu o curioso volume extra em seu sungão verde. “Pensaram o quê, que eu tava feliz de ver vocês?”, diz Emerson, levantando-se da areia e rindo conosco. O frescobol recomeça, com a bolinha azul que nosso amigo salvou da fúria do oceano aninhando-a carinhosamente sob seu escroto.

Eu tenho vinte e um anos. “O quê”, perguntou Roberta. “Desculpa, eu pensei alto. Eu disse que tenho vinte e um anos”. “Engraçado, parece que tem mais”, respondeu. “Como assim?”, tentei dar prosseguimento à conversa. “São os meus cabelos brancos?” Eu tenho alguns fios de cabelo branco e me orgulho deles. “É pela sua cara”. O que tem a minha cara? “Você parece meu pai em frente à TV sábado à noite”, emendou muito séria. “Então o que nós temos aqui é um surto esquizofrênico do complexo de Electra” , mandei ver. Eu sou um babaca intelectualizado. Lembro de ter vibrado ao perceber que ela sabia do que eu estava falando, pela expressão do rosto, aquele rosto leitoso, a pele “branca, branca, branca”. E por quê não entenderia? Eu não falava grego, nossa conversa era absolutamente simples, qualquer um entenderia também. Mas eu sofro de megalomania intermitente, felizmente seguida de quedas bruscas de auto-estima; mas até meus níveis de amor próprio se normalizarem, entre altos e baixos, posso ser o mais inteligente ou o pior dos homens. E naquele momento, meu ego inflava a cada nova tirada brilhante, a cada novo joguinho lingüístico. E Roberta, o que me respondeu? “Falou o Senhor Complexo de Portnoy” . Ruiva maldita. Me pegou.

Cíntia era uma loira bonita, boca grande, peitos idem. O resto eu não conseguira ver. Mostrava os dentes enormes a cada nova risada infligida ora por Emerson, ora por Gilberto. Foi a única a beber vinho ontem, no bar Limite, e foi a que primeiro perdeu as estribeiras. Falava mais alto do que o restante de nós, gargalhava desbragadamente, puxando os dois pobres rapazes pelo pescoço. Ou melhor, o pobre rapaz era apenas Emerson. Gilberto estava adorando aqueles seios fartos pulando no decote, bem debaixo do seu nariz. Não podemos esquecer que Emerson ainda travava sua batalha particular para definir o que é de César, e a experiência de horas antes com uma outra loura calipígea, e a visível e involuntária ereção que o encontro lhe havia proporcionado ainda latejavam em sua mente conturbada, pondo em xeque sua recém-adquirida emancipação sexual, por assim dizer. A essa altura eu e Roberta já havíamos nos entendido e conversávamos com desenvoltura, como velhos conhecidos. Não me preocupava mais com Carmem; cheguei até a esquecer que ela encontrava-se conosco, e que o motivo para eu estar ali, ao invés de trocar idéias magníficas com uma outra mulher, era justo a reconciliação que eu tanto desejava com minha querida Carminha. E como não tirava os olhos de Emerson – quero dizer, só os tirava dele para pousá-los famintos sobre Roberta -, eu já pensava se minha ex-namorada não deveria continuar a ser ex. E em meio a este reconfortante pensamento, Cíntia agarrara o “desafortunado” Emerson e, adivinhe, tal qual ocorrera havia pouco com a outra loura, beijou-o com força, como se estivesse à espera daquele momento durante toda a noite. Eu e Jaime, sem palavras. Gilberto ficou desconcertado. Fora um longo papo que levara com a moça, e tudo para quê? Para que seu amigo gay pudesse brincar de heterossexual. E Emerson não fizera qualquer tipo de esforço para que Cíntia se entregasse daquela forma, eu o vigiara por um bom tempo. Ela não estava bêbada, apenas alegre e, como pudemos testemunhar, cheia de tesão. “Não é possível, eu vou virar veado também”, disse Jaiminho para mim, que chegara à mesma conclusão.

Já é quase meio-dia. Minha barriga emite uns ganidos de cão famélico. Emerson corre para o último mergulho antes de voltarmos à casa para almoçar. Jaime fecha a cadeira enquanto Gilberto recolhe as raquetes. Eu apanho o isopor, ainda praticamente cheio de latinhas de cerveja bem geladas, daquelas que eu nunca desprezaria caso meu fígado estivesse em pleno funcionamento. Guardo o livro numa sacola plástica, receoso por sua integridade. O sol por instantes é tolhido por uma nuvem já em vias de se espargir. Retiro os óculos negros e espreguiço o corpo. Caminhamos em direção ao carro. “Todo mundo limpando os pés antes de entrar”, nos diz Jaime, a mamãe ganso. “Quando é que ela vem”, perguntou Gilberto, “às três; dá tempo de fazer a sesta”, respondi. “Só quero ver se ela vai mesmo trazer alguma amiga”, bateu os pés na calçada, o Gilberto. Emerson nada diz. Ele também espera alguém após o cochilo da tarde.

“Eu nunca entendi o porquê daquelas páginas iniciais falando de Robert Cohn. Ele parece interessante no começo, mas depois se torna um estorvo pros outros personagens”. Ela lera o Hemingway há pouco tempo. Robert Cohn fora campeão de boxe na faculdade. Era um grande pugilista. Esmurrara nosso bravo toureiro, que se recusara a erguer os punhos para se defender. Aquilo fora a gota para ela. Nós também já não o suportávamos. Ele detestara as touradas de Pamplona, apesar de admitir que o espetáculo tinha lá seu charme. Pobre Robert. “Foi o toureiro que partiu pra cima dele, enciumado de Brett, e Robert apenas se defendeu”, corrigiu-me Roberta. Esmurrara nosso bravo toureiro, que se recusara a dar-se por vencido. Cairia somente diante de um touro, se houvesse algum touro capaz de tal façanha. “Eu também queria entender. Acho que ele mudou a estória conforme a escrevia. Talvez Robert originalmente tivesse uma importância maior do que a que lhe foi atribuída”, teorizei. Roberta concordou. “É possível. Quem sabe ele não era a figura central do livro? Quem narra a estória é Barnes, ele é o protagonista, e Robert se envolve com Brett. Ele só vai à Espanha assistir às touradas por causa dela, ele a segue feito um cachorrinho”. “Robert tem sua relevância, isso eu não discuto, mas não dá a impressão de que ele é o catalisador da estória, pelo jeito que o livro começa, um capítulo curto, é verdade, mas todo dedicado a ele? Como é que era mesmo...?”, me esforcei para lembrar. Carmem, quem é Carmem? Ela se calara enquanto o restante de nós se divertia. Emerson e Cíntia foram dar uma volta. Jaime conversava animadamente, como eu e Roberta, com a garota sem nome. Gilberto, refeito do baque, discutia futebol com Berni, uma discussão acalorada, a qual Carmem apenas ouvia sem interesse. Carmem, minha ex-namorada.

Já passava das quatro da manhã quando nos retiramos. Gilberto, calado. Bernardo, de braços dados com a prima Carmem, também calada, ainda tagarelava, incansável. Jaime conseguiu se acertar com a outra garota (mas que diabos, qual é o nome dela afinal?). Emerson e Cíntia caminhavam de mãos dadas. Eu e Roberta vínhamos um pouco atrás, ainda conversando sobre Hemingway. Eu tinha as mãos nos bolsos, os óculos encaixados na gola em V da minha camiseta. Ela segurava meu braço com as duas mãos e falava próximo ao meu ouvido. Os carros estavam estacionados na rua atrás do bar Limite.

Roberta nos levou até a praça. Dali voltaríamos andando, como fizéramos na ida. A casa alugada ficava perto. Descemos todos do carro de quatro portas, menos ela. Saltei do lado do carona, dei a volta pela frente, os faróis acesos no meu rosto, e me debrucei na porta da motorista, que não fora aberta. “Poderíamos ter sido tão felizes juntos”, falou Roberta. Eu havia me enganado. Ela nada queria comigo. Eu estava feliz em conhecê-la e pensei que ficaríamos juntos. Bernardo, o líder do comboio, buzinou adiante, impaciente com a demora. Ergui a cabeça e olhei sobre o teto do carro. Notei Carmem a me observar do banco traseiro do carro do primo, um olhar triste e cansado, como o de Brett a lamentar a mutilação de Barnes. E me lembrei da cena final do livro. Tornei a me debruçar sobre a porta de Roberta. “Sim”, eu disse, “é sempre agradável pensar nisso”. Ela sorriu e falou “então você entendeu”. Saiu do carro e nos beijamos. A buzina tocou de novo, mas desta vez não lhe dei atenção.

Combinamos de nos ver hoje. Ela virá de carro com Cíntia, a garota do Jaime – cujo nome ele também não lembra, acabou de me dizer – e uma amiga que chegaria hoje de viagem, a quem Roberta pretende apresentar Gilberto, que está sozinho e muito exasperado com o fantástico desempenho involuntário de Emerson. “Você é um veado paraguaio”, desabafou ontem no caminho para casa. “Eu gostei da Cíntia”, emendou Emerson. “Bela hora pra voltar pro armário”, praguejou Gilberto. Nos entreolhamos, muito sérios. “E a Carmem, como ela fica”, perguntou Jaime. “Se o Beto quiser boto ela na fita dele. Você quer, Beto?”, respondi rindo e cutucando Gilberto. Nós todos rimos juntos. Viemos gritando pelas ruas de terra e rindo feito um bando de moleques, com o sol se levantando no horizonte, a iluminar o balneário.

Marlon Magno
Enviado por Marlon Magno em 20/08/2005
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