O GIGANTE DESASTRADO

Cadê? Cadê o prefeito? Cadê o governador? Cadê a desgraçada que pariu todos esses cachorro, esses filho da puta? Quero olhar no olho de cada um, quero vê eles me dizerem na cara que num têm nada a ver com a morte do meu filho! Sai, me deixa! Num tenta me consolar que eu tô doida! Eu tô doida! Num me traga água, num quero nenhum comprimido, que de ficar chapada, sem saber o que tá acontecendo, eu já tô farta! Chega! Para de me adular e traz um vereador aqui pra mim! Traz um deputado, pode ser estadual, num tem problema. Traz um infeliz daquele do Senado, ou então me traz um ministro. Melhor, muito melhor! Me traz a presidenta! Isso! Ai, que é isso que eu quero! Me traz a presidenta! Nós duas é mulher e nós duas pode se entender sem que ninguém se meta! Me traz a puta da presidenta, que eu já cansei de apanhar e agora é a minha vez de tirar sangue da cara dela! Dela!

O quê? Vão me prender? Pois me traga a polícia! Com aquela fumaça que arde, com seus porrete e suas bala de furar olho. O quê? Num vai chamar? Deixa que eu chamo! Polícia! Polícia! Anda, corre, avia em me prender que eu cometi o crime de perder um filho pra mentira! Ai, foi a mentira, foi a mentira, a mentira, que matou meu menino. Prometeram educação. Na escola, o meu filho num ia. Num tinha professor, num tinha merenda... Outro dia mataram um colega dele na hora do recreio. Ele ia fazer o que lá? Aprender o quê? A morrer? Ai, que isso a gente, a gente que é lascado, que é pobre, que é fodido... Isso a gente já nasce sabendo. Prometeram hospital. Hospital não tem. Saúde é um luxo. Pra onde eu olho é só ferida aberta e gente pedindo perdão a Deus por ter nascido na merda, gente pedindo perdão a Deus pra num entrar no hospital em cima de uma maca e sair de lá pra uma gaveta do IML. Tudo mentira! Esse negócio aí de milagre, de copa do mundo, de pobre comendo carne e andando de carro, tudo mentira! Cadê? Cadê meu carro? Num tem nem ônibus passando aqui perto. Cadê a carne? A carne que eu como é a da vida que me tiraram. Mas eu juro por todos os santo e orixá que, antes de fazer a digestão, eu mato um dos culpado. Mato. Mato! Vô presa, mas já matei! Pronto, já era. Matar é a justiça deles desde sempre, num é? Desde minha mãe, minha avó, desde o caralho de asa! Por que que agora num pode ser a minha justiça? Vô matar! Vô matar, sim!

Eu só num posso matar o Gigante. Ai, esse num dá. É covardia matar inocente que dorme, mesmo que ele seja desse tamanhão todo. Ai, tirar sangue desse eu num vou. O quê? Foi o Gigante que pisou no meu filho e matou ele esmagado? Confesso, confirmo que foi, sim. Mas, quem foi que acordou o Gigante? Num foi o barulho da nossa desgraça? E quem causa a nossa desgraça? Quem é? É aquele bocado de dente branco engravatado que pega na minha mão dois dia antes da eleição e, dois dia depois, manda um soldado quebrar o meu braço. E o que tu queria do mofino desse gigante? Quem dorme três dia seguido, acorda atordoado, num acorda? Imagine dormir tanto tempo. A última vez que eu vi ele de pé, eu só contava uns dez ano e quem mandava nesse país era a farda. Depois de um bocado de menino morto, ele voltou a dormir, sem vigiar o que iam fazer com a gente. E fizeram merda! Cagaram o pau! Esculhambaram com tudo! E batizaram toda essa putaria com um nome bonito: DEMOCRACIA. O barulho foi tanto que, um dia desse ele acordou de novo, bêbado, sem saber pra onde ir... E pisou no meu filho. Meu menino preto, de pé na chinela, no meio daqueles pessoal que mais parecia de novela. Ai, que o pé do Gigante não errou. Mesmo sem querer, foi certeiro em cima do meu pequeno. Ele saiu de casa dizendo que ia lutar por nós aqui da favela e voltou morto. Tá vendo aquele corpo ali em cima da mesa? Aquilo num é um corpo, é uma voz, que grita, grita e grita, dia e noite! Mas com o grito do meu menino o Gigante num acorda, a voz dele tem o som da fome, da pele preta, do esgoto a céu aberto, do ônibus lotado, do CD pirata, da boca-de-fumo, do estupro, do assalto. O meu filho era o moço mais bonito e bom que eu conheci na vida, mas, pra quem num conhecia ele, a televisão ensina que ele era o cão vestido de gente! Num confie nesse negrinho! Ele tá de olho no teu celular e no teu tênis e ele vai te matar! Cuidado doutor! Cuidado doutor! Cuidado com o filho preto, da costureira preta que mora em uma favela de gente preta. Até quem é branco e mora aqui, é preto também! Tô mentindo?

Num me manda dormir que eu num vou! Num vou! Que paz? Que porra de paz?! Eu quero vingança! Mataram meu filho e eu vou sair na rua de branco? A puta que pariu! Eu quero é vermelho! Da pomba-gira, da febre, do sangue! Vermelho! Vai dormir tu e o Gigante. Eu não. Eu vou ficar aqui. Enquanto num pagarem pela morte do meu menino, eu num vou dormir nunca mais. Essa nossa mania de dormir é uma desgraça. Mas entendo vocês tudo, porque dormir é coisa de pessoa humana. Mas... Gigante dormir? Acho tão feio. Num sei se tô certa mas sou da crença que gigante é pra vigiar, pra cuidar de gente miúda.

Deve haver uma terra, em algum lugar, onde gigante não dorme... Onde gigante não pisa em cabeça de quem acredita na sua força e o segue, inocente.

EMERSON BRAGA
Enviado por EMERSON BRAGA em 19/07/2013
Código do texto: T4394232
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