O cão e o poeta
 
Todas as nossas ideias ou percepções mais fracas são imitações de nossas mais vivas impressões ou percepções.
David Hume
 
              Um desses dias para não sair de casa.
              Passei o dia no hospital, resolvendo problemas sérios, inerentes ao oficio de diretor. Um deles foi transferir uma senhora com problemas renais do hospital público para o particular, à noite havia um casamento para ir, minha mulher falou desse evento durante todo o mês e me fez prometer que não perderia a ocasião. Sensível ao seu pedido, praticamente estrangulei a minha agenda.
              Quando estava saindo do hospital, notei que a minha carteira com todos os documentos, inclusive a carteira da Ordem, não estava no bolso do paletó. Sempre que isso acontece entro em desespero.
              -Merda, onde a deixei? - perguntei em voz alta como um doido, falando sozinho na escadaria. Voltei até o consultório, vasculhei tudo e para piorar, também não encontrava o meu célula; procurei o segurança do hospital que me orientou a chamar a polícia. Ao ligar o telefone fixo, fui orientado pelos policiais a ir até à delegacia. Era muito para mim: sem telefone, atrasado, com todos os meus documentos perdidos... não tive escolha, peguei o meu carro e fui até lá.
              Aqui estou, há quase duas horas. Maíra, minha mulher já não atende ao telefone de raiva, achando que fiz de propósito e eu, no momento, não tenho cabeça para argumentar. Cansado por ter de esperar o atendimento e as providências, o tempo todo de pé, resolvi sentar em um banco no canto esquerdo junto à porta. A delegacia estava lotada, dois policiais faziam as ocorrências e um escrivão respondia pelo plantão. Um deles, muito gentilmente, disse que haviam achado a minha carteira e que uma viatura estava trazendo-a. Não entraram em detalhes, perguntaram-me se eu poderia esperar uns minutinhos. No meio a toda a confusão, resolvi esperar, afinal, já havia perdido a festa mesmo e minha mulher iria brigar de qualquer jeito.
                 Nesse ínterim, prestei atenção a uma discussão entre um travesti e um senhor de idade sobre o pagamento de programa. Tomei um susto quando, repentinamente, alguém entrou correndo, usava uma roupa surrada e um quepe, parecia não ter mais que um metro e meio, um pouco sujo, olhos pequenos e barba fechada. Passou por entre as pessoas que aguardavam no interior da delegacia e falou a um dos policiais:
                -Sumiram com a minha rainha.
                -Como, senhor?, perguntou-lhe o militar, um estereótipo da nova polícia: forte, com tatuagem no braço esquerdo e fisionomia de lutador de MMA. Parou o que estava fazendo e encarou o pequeno homem, que atraíra a atenção de todos, fazendo surgir, magicamente, um silêncio no caos de vozes.
                 -Minha cachorra, Rainha.... Sumiram com ela, há seis horas eu estou procurando-a. Olhe – disse, pegando algo na carteira surrada – tem uma foto dela aqui.
                 O policial inspecionou a foto.
                -Um pastor alemão? - disse o policial, dando um sorriso – não vê que estamos em uma noite ocupada aqui, senhor?
                -Sei que há muito trabalho, mas ela é muito importante, posso esperar o quanto for necessário- disse e recuou alguns passos.
                Policiais são meio truculentos, mas, de onde eu me encontrava, sentado no banco, percebi que aquele não era. Ele balançou a cabeça afirmativamente e disse:
           -     Está bem, espere um pouco. Vou ver o que posso fazer.
                 O homem ficou sem saber o que fazer, havia um banco vago ao meu lado. Olhei para ele e lhe mostrei o assento. Ensaiando um sorriso amistoso, disse-lhe:
                -É melhor o senhor se sentar, não é mesmo? Ele balançou a cabeça afirmativamente.
                -Acho que vai demorar – falou ao sentar-se. Tirou o quepe, pude ver a careca reluzente, olhos com rugas profundas...Tão próximo a mim, parecia uma pessoa mais velha e sofrida.
                 Ficou em silêncio por um minuto, depois me estendeu a mão e disse:
                -Paulo Neto, as pessoas me chamam de Poeta, pois para viver declamo poesias de Drummond, nos sinais de trânsito e nas praças.
Apertei sua mão, triplamente surpreso: pela iniciativa, pelos calos e pela “profissão”. Fiquei curioso, conheço verdadeiros gênios da medicina que nunca leram Carlos Drummond... Ali estava um andarilho, que parecia morar nas ruas, que procurava por uma cadela, e que declamava Drummond nos sinais e nas praças.
               -Bela profissão... Disse-lhe, sem ser irônico – Drummond é uma boa escolha.
              -Gosta? -Perguntou-me.
              -Li um pouco quando era mais jovem, hoje estou atolado em literatura técnica-, disse-lhe sinceramente. "O tempo consome as pessoas após os quarenta anos e estancar a vida profissional para ler um livro passa a ser algo monumental”.
               -Ou é médico, ou advogado, disse-me olhando para os meus pés.                      -Pelos sapatos é médico, pois eles não se importam com calçados... Definitivamente deve ser médico, seu sapato é um lixo,  -concluiu. Eu sorri com o comentário, pensando que minha mulher teria gostado de ouvir aquilo.
               -Ortopedista, trabalho no hospital central – falei ainda com o sorriso preso aos lábios, pois estava achando engraçado o julgamento feito a partir dos meus sapatos. Não havia pensado nisso.
               -Odeio médicos, hospital, doença... Sem ofensas, essa é uma parte obscura da vida humana, sobre a qual eu não gosto de pensar – disse e abaixou a cabeça, olhando para a foto.
               -Eu também detesto hospitais e mortes, deve ser por isso que sou ortopedista, sabe? Disse-lhe. - Uma especialidade em que as pessoas morrem em menor quantidade.... Agora dirijo um hospital, muito problema burocrático. Para encerrar o assunto chato, pedi a foto: – Posso ver? Quando eu era pequeno tive dois cães da raça pastor alemão.
               Ele balançou a cabeça afirmativamente e me entregou a foto.
               -Foi um policial militar que me deu Rainha. Na época ela tinha uma doença de pele, acho que a convivência comigo fez a doença desaparecer – ele limpou as lágrimas dos olhos. – Doutor, essa menina já me salvou tantas vezes....Não posso perdê-la agora, ela tem apenas dez anos, ainda temos uns bons seis anos de convivência.
              -Belo animal! – olhei a foto, onde se via um pastor alemão de corpo inteiro e disse-lhe: – Alguém vai encontrá-la para o senhor.
Um dos policiais veio até nós dois e disse o meu nome.
              -Robledo? – Entregou-me a carteira. Examinei-a e detectei que o dinheiro havia sumido, mas os documentos estavam ali. Disse-me que haviam encontrado o larápio e que o escrivão me aguardava para fazer a representação.
              -Qual a idade? - perguntei.
              -Quinze, foi descuido da segurança, ali na redondeza tem muito pivete – disse o policial.
              -Então, esquece!- O policial parecia agradecido, então prossegui: – Pode me fazer um favor de dar uma atenção especial a esse senhor?, perguntei ao policial, o mesmo da tatuagem. Ele pegou a foto e balançou a cabeça:
              -Achar esse animal é como achar uma agulha no palheiro, sinto muito, porém o máximo que posso fazer é registrar a ocorrência e investigar depois. Dou um conselho: procure você mesmo – disse ao velho senhor e retornou à mesa.
             O poeta ficou desolado. Refleti um segundo e disse:
            -Podemos procurar. Você tem uma casa, quero dizer um lugar costumeiro na rua, uma marquise, uma ponte, um abrigo? Cães retornam para os lugares onde vivem, mesmo que seja um lugar aberto..., talvez ela esteja procurando por você tanto quanto você a procura – disse-lhe, enquanto colocava a carteira no bolso.
              -Moro na rua, doutor – ele começou a chorar – por isso ela não sabe onde estou, tem seis horas que estou procurando, falta apenas o beco da Lúcia, mas lá tenho medo de ir sozinho.
              -Podemos dar uma volta por lá – disse sem pensar em minha mulher, afinal já passava da meia noite.
Andei por duas horas ao redor do local onde o poeta costumava ficar, pensando que noite inusitada, que tipo de vida levava aquele homem gentil, como se comportava, como amava um animal, partilhava a vida com ele, uma realidade difícil de entender.
               Descemos a rua sem saída – famosa e conhecida como beco da Lúcia - escura, tenebrosa, que acabava em um matagal. Resolvi descer do carro, andamos até avistar a bela cadela deitada, ele correu para abraçar a amiga, no chão ela estava imóvel, parada, sem respiração.
                  O poeta abraçou-a, baixinho falava versos de Drummond, não sabia o que fazia, talvez nunca tê-la encontrado fosse melhor do que ver a amiga morta naquele terreno abandonado, não saber sobre coisas tristes, talvez, seja a chave de toda felicidade.
               Fiquei parado pensando na minha vida, meu casamento, minhas filhas, como tudo corre, tudo tão rápido no dia a dia. Talvez Maíra estivesse certa, arrumei uma desculpa para trabalhar até o limite do horário. Ela queria ir ao casamento, instintivamente sabia que eu não queria sair do meu conforto dentro do consultório, odiava casamentos, fiz o que queria, sem considerar quem ou o que me rodeava. Assim deixava o mundo de fora, deixava Maíra de fora, enquanto eu ficava isolado, protegido no meu mundo, aparecendo quando bem entendia, uma sombra...
              Ali, sentado no capô do Corola, respirando um ar diferente aquela noite, vendo aquele homem baixinho, de quepe, sujo, morador de rua, algo mudou e tudo parecia distante. Todas as responsabilidades de diretor de hospital estavam sem valor, a vida parecia significativa, muito mais do que a minha vontade de saber, de trabalhar, de ser mais do que sou. Fiquei parado, sentindo o vento, uma percepção dessa vida que passa, da vida que vai embora. Apenas um cachorro morto e para isso ninguém ligaria, afinal, quantas pessoas vejo morrer sem ninguém por perto, nem um único parente para o último abraço!?
                Ele vinha carregando a cadela e parou na minha frente.
               -Posso lhe pedir um favor?
               Balancei a cabeça afirmativamente.
              -Quero levá-la para enterrar perto do Parque do Girassol, era lá que ela mais gostava de brincar.
             Abri a porta do carro, ele entrou e sentou-se no banco de trás. Saímos rumo ao Parque do Girassol.
 
 
Fim
POR JJ DE SOUZA - ESCUTE A MUSICA NO SITE DO ESCRITOR, VALE A PENA
 

 

JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 24/07/2013
Reeditado em 16/08/2015
Código do texto: T4402649
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