ANTONIO. INVÍSIVEL E TRAÍDO.

Antônio. Sujeito simples, de vida pacata. Um entre tantos anônimos que fazem da vida o que ela é, um conglomerado de gente em busca de alguma coisa, o que ninguém sabe o que é. E é justamente esta busca incansável que cria sua história que se soma a outra, a mais outra... E assim até juntar todas numa só. Assim é a vida. Sem explicações, mas com milhões de histórias.

Naquela tarde Antônio escreveria mais um capítulo da sua história. Anônima. Sem os holofotes da fama. Sem os privilégios, ou agruras de alguém importante. Era simplesmente Antônio. E assim se foram por quatro décadas. Uma infância de amigos que se perderam pelos ventos da vida. Da juventude perdida, por causa das bebidas. Da regeneração. Seu grande amor, anônimo amor. Mais um casamento entre tantos, mais um casal como muitos.

Nada havia de muito especial na vida de Antônio. Anos escritos em poucas páginas. Livro sem aventura. Vida simples e rotineira. Em casa, apenas Antônio, bom pai, bom marido. No trabalho apenas bom funcionário, nada além. Sem promoções, sem prestígio. Cumpria fielmente sua tarefa robotizada. Antônio acreditava na invisibilidade, sabia, pois ninguém o observava. Nem para o bem, nem para o mal. Mas, sim, naquela tarde tudo mudaria.

Sua expressão no rosto sobrecarregado. As rugas da testa formando um “V” em sentido ao nariz indicavam a raiva, a surpresa e o desânimo. Teve de ser forte para não sucumbir ao seu desejo, e permitir que as lágrimas escorressem pela sua face amargurada. Seus olhos chegaram a marejar, mas Antônio foi firme. Nem mesmo sua incrível invisibilidade foi capaz de driblar o capitalismo, e à ordem econômica, e seus novos modelos de gestão. Invisível, Seguiu para casa. Naquela tarde chegaria mais cedo. Talvez sua invisibilidade o livrasse do olhar repreensivo de sua esposa, das caras tristes dos filhos, quem sabe, talvez...

Tamanha a distração, que nem o cumprimento do porteiro pode perceber. Antônio pegou o elevador. Em poucos segundos estava à porta de casa. Parou por um instante. Pensou na melhor maneira de falar. Se fosse possível ter o melhor jeito de se contar tragédias. Talvez ir direto ao assuntou, ponderava. Por via das dúvidas lentamente entrou no apartamento.

Descalçou os sapatos sobre um tapete perto da porta. Costume diário. Recostou sua pasta sobre uma mesinha ao centro da sala. Sem barulho procurou por Maria. Não a encontrou na sala. Na cozinha também não estava. Quem sabe a área de serviço. Nada. Restou o quarto, ou talvez sua mulher tivesse saído.

Antônio seguiu em direção ao quarto. Passou pelo corredor onde ficavam os dormitórios de seus dois filhos. Naquela hora dificilmente estariam por casa. Por certo na escola. Com o peito doído pela demissão, Antônio queria apenas um banho, e sua cama, deitar e por os pensamentos no lugar. Não pôde. Ao se aproximar de seu quarto ouviu o que jamais quisera escutar o que jamais poderia permitir, ou aceitar. Pela fresta da porta entreaberta viu sua esposa enlaçada a outro homem, que não ele.

Com o outro, ainda dentro de si, Maria apenas viu seu esposo entrando abruptamente no quarto. Depois de anos de invisibilidade ela voltara a vê-lo, e foi pela ultima vez. Com o coração tomado pela ira, Antônio antes de entrar fora até a cozinha. Pegou a faca de carnes. Aquela que usava nos churrascos de domingo. Os dois amantes não tiveram sequer chances de defesa. Foram várias, e várias estocadas mortais.

Quando a polícia os encontrou, estavam ali, um casal morto a facadas. E um homem imóvel sentado na beira da cama. As vestes sujas de sangue, e olhos vidrado na direção do nada. Era Antônio. Havia escrito o capítulo mais triste e trágico de sua história. Depois de tantas páginas não lidas, um ato, um desatino, retiraram de Antônio sua invisibilidade de anos. Sua foto na capa do Jornal da Manha lhe tirou do anonimato. Agora todos conheciam a história de Antônio. Uma história triste. Amarga. Mais uma, entre tantas que formam esta vida imperfeita.

Douglas Eralldo
Enviado por Douglas Eralldo em 07/04/2007
Código do texto: T440979
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