Contos da Vovó II

Como já falei, a comida do colégio era horrível. Minha mãe, sabendo disso, quando ia me visitar, levava frutas , pão caseiro, manteiga, leite e bolo. Aos finais de semana me deliciava e sempre sobrava para os dias seguintes. Assim como eu, outras colegas recebiam visitas e guloseimas. Depois das visitas nos reuníamos para fazer um piquenique e comermos juntas o que nossas famílias nos levavam. Só que a semana tem sete dias e nossas reservas alimentícias acabavam antes. Então, minha mãe começou a dar uma “contribuição” para uma irmã, para digamos , melhorar a minha alimentação diária. Dessa maneira, quando estava sózinha, a irmã me trazia um pedaço de bolo, um cacho de uvas, um pedaço de torta e assim meus dias naquele internato melhoraram, ao menos ficaram mais saborosos e menos frugais, para não dizer que não passava mais fome.

Estive no colégio interno por quatro anos, dos oito aos doze anos.. Mas, se eu tinha família, mãe e irmão - meu pai havia deixado minha mão quando eu era pequena – porque eu estava confinada num internato? Meu irmão, que era mais velho, estava na casa de uma irmã de minha mãe, chamada Maria Aparecida. A resposta que sempre me davam é que minha mãe precisava trabalhar, não podia cuidar do meu irmão, nem de mim . Ele não estava num internato porque, na época, não havia nenhum para meninos na cidade. No início, não sabia qual era o trabalho de minha mãe, ela viajava e nem sempre me visitava nos finais de semana. Quando comecei a entender um pouco mais da vida e compreender que é preciso trabalhar com dignidade e que todo trabalho é honesto e honrado, entendi porque minha mãe não podia cuidar de seus filhos. Ela tinha uma “casa” de , digamos, “diversão masculina”. Ela administrava sózinha e cuidava das meninas que lá trabalhavam. Era um lugar refinado e frequentado pelos senhores mais respeitados da sociedade local. Tudo era de muito bom gosto: cortinas de veludo, móveis bem trabalhados e conservados, lustres de cristal, almofadas de cetim, bebidas finas, quartos limpos e luxuosos. As roupas usadas pelas suas “meninas” eram muito bem feitas, de tecidos finos. As lingeries eram confeccionadas na mais pura cambraia branca, com detalhes em renda e fitas de cetim. Corpetes, calçolas e camisolas ricamente bordadas, dignas das mulheres mais elegantes e sofisticadas da cidade. Sabem quem confeccionava essas lingeries? Minha mãe. E não era somente para as suas meninas. Lembram que eu disse que ela viajava muito? Então, ela fabricava em quantidade superior ao consumo de sua casa e o restante vendia para outras casas como a sua das cidades vizinhas. Seu trabalho era valorizado e freguesia não lhe faltava. E assim, por anos, ela me manteve no colégio interno e a meu irmão na casa de nossa tia.

Durante esse tempo, por vezes, minha mãe me levava para viajar. Estive em Paranaguá, para ver os navios que, já naquela época, ancoravam em grande quantidade. Minha mãe insistia para que me banhasse no mar. Eu jamais aceitei. Criança normalmente adora a água, a areia, mas não eu. Havia óleo derramado dos navios, boiando por cima da água e consequentemente ancoravam na areia. Nem nela eu pisava descalça. Sempre achei muito sujas as praias. O mar é bonito , imenso, mas molhar os pés em suas águas nunca me atraiu. Numa ocasião, minha mãe me levou à Curitiba para comprar-me um presente. Como fazia aulas de música no colégio ela quis presentear -me com um piano. Nem acreditei quando me contou. Como estava próxima a sair do colégio pois minha mãe havia comprado uma casa para morarmos, agora que já estávamos maiores e não precisávamos de muitos cuidados, ela queria que continuasse a praticar música e havia encomendado um piano de cauda.

Como já citei, anteriormente, meu pai havia se separado de minha mãe, quando éramos pequenos, e como ela sabia costurar muito bem, começou a fazer as peças íntimas para mulheres de casas de prostituição. Ele havia deixado um pouco de dinheiro para ela e com seu trabalho resolveu entrar nesse ramo, alugou uma casa pequena, no início, depois a adquiriu , ampliou e decorou com muito bom gosto. Foi um sucesso. Tinha o seu próprio negócio. Sempre foi muito trabalhadora e continuou costurando lingerie, mesmo depois de estabilizada. Nesse ínterim de muito trabalho e viagens, conheceu um homem , mais jovem, de nome Juca e apaixonou-se. Eu fui conhecê-lo nessa viagem à Curitiba. Sabia de sua existência pois minha mãe já havia falado a respeito dele. Não gostei desde o início, a começar pelo nome. Quando o vi pessoalmente gostei menos ainda. Tinha pose de “Dom Juan”, bem vestido, cabelos aparados, não tinha a menor aparência de trabalhador e sim de explorador, um “janota” como diziam na época. Não tinha nada a ver com a minha mãe. No caminho para a loja de instrumentos musicais, passamos por uma revenda de carros. No início da década de 20, não existiam muitas opções de marcas e modelos e não eram baratos. Ele se encantou com um modelo conversível da Ford. Entrou no carro, mexeu no volante, pisou nos pedais, embora nem soubesse dirigir direito. Comentou com minha mãe que um carro seria útil para ela viajar e efetuar suas vendas. Comecei a perceber que ele estava querendo convencê-la a comprar o carro. Comecei a pensar: Alto lá, nós viemos a Curitiba para comprar o meu piano, não é? Para que um carro, muinha mãe nem sabia dirigir, as estradas eram péssimas, a cidade pequena, além do mais existia uma coisa muito útil naquela época e que funcionava muito bem que era ônibus e carro de praça. Para quem não sabe , carro de praça são os nossos táxis. Percebi que minha mãe começou a se interessar pelo carro, sentou, admirou o painel, se é que se pode chamar um relógio com números grandes e ponteiros de painel, a lataria reluzente, cor vermelho “cheguei” . Combinava com ele, gostava de aparecer, ser admirado, narcisista (sabem o que é? Ouvi falar uma vez mas não lembro direito , mas que ele é tenho certeza). Era do tipo : Eu estou aqui mulherada, me admirem e a meu carro! O Juca disse a ela que , no momento, o carro seria mais útil que um piano de cauda a entulhar a sala da casa. Aquilo me fez sentir náuseas, tive vontade de vomitar no colo dele e no assento do carro. Pedi a minha mãe para irmos embora e comprarmos o meu piano. Ela me disse para esperar um pouco que estava conversando com o seu “namorado” assunto sério que criança não entende e não deve participar. Fui sentar num banco dentro da loja e eles começaram a conversar com um vendedor de terno e gravata. Não preciso dizer o que aconteceu na sequência, não é mesmo? Ele ficou com o carro, último modelo , e eu sem o piano. Minha mãe me consolou dizendo que num futuro próximo compraria o piano para mim. Agora não era hora , o carro seria útil para as suas vendas e blá, blá, blá, blá. Jurei nunca gostar de um homem, porque quando gostamos , ficamos burras, cegas, surdas e idiotas. Que raiva dele! Alguém aí acredita que eu ganhei o piano???????

Catleya
Enviado por Catleya em 17/09/2013
Código do texto: T4485779
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