Contos da Vovó III

O meu piano se foi, e o amor que o Sr. Juca sentia pela minha mãe também. A paixão não durou muito tempo e ele a deixou mas levou o carro e tudo mais que conseguiu. Minha mãe teve de vender a casa , em cuja sala caberia o meu piano de cauda que nunca chegou, para pagar as dívidas do carro e as extravagâncias do namorado. Comprou uma menor , com terreno grande, na periferia da cidade, próximo à casa de sua mãe, minha avó, de nome Helena. Adorei, pois ela fazia doces de frutas maravilhosos. Pegava caixas de madeira em formato quadrado e colocava o doce, assim que saía do fogo, para moldar. Deixava esfriar e posteriormente tirava da caixa e vendia aos pedaços. Fazia doce de figo, de laranja, de goiaba, de leite, de pêssego, de marmelo e outros que inventava. O meu favorito era de goiaba. Nossa vida não foi fácil neste período. Estávamos acostumados com uma vida de regalias, mais tranquila, sem muito esforço e de repente me vi diante da dura realidade de plantar para poder comer. Por vezes minha mãe conversava comigo e me pedia desculpas, dizendo não ser este o tipo de vida que sonhou para mim. Mas Deus não nos abandonou, nunca nos faltou do que comer e vestir. Minha avó vinha nos visitar com frequência e trazia seus doces maravilhosos e mais algumas gostosuras que preparava. Minha avó era uma excelente cozinheira. Vivia da venda de seus produtos.

Como já estava mocinha, minha mãe julgou ser hora de me casar. Sim, naquela época, as famílias casavam os filhos sem eles sequer conhecerem seus futuros maridos e esposas. Horrível é o mínimo que posso dizer, principalmente porque era eu quem estavam casando. Neste período, estava interessada em um rapaz que era estudante do Colégio Secundário Antonio Mendonça de Sá, o melhor da cidade. Minha mãe não aprovou a escolha pois era estudante e negro. Os europeus não gostavam de mistura de raças, principalmente com a negra, recém liberta no Brasil. Ela “acertou”, preparou meu casamento com um polonês, minha ascendência, sem meu consentimento e sem o conhecer. Estava então com quinze anos, idade do sonho, da fantasia, da idealização, da paixão. E estava apaixonada por João, o estudante. Nessa época as moças casavam-se muito cedo e se demorasse um pouco mais para me casar ficaria para

“TITIA”. Depois que completasse vinte anos era quase impossível arrumar um bom casamento. Todos os jovens bem nascidos, dessa idade já estavam casados ou comprometidos. Não adiantaram meus argumentos,minhas desculpas, minha paixão por João, nada a demoveu da má fadada ( infeliz) ideia de me casar com o polaco.

Contrariada, triste, revoltada e resignada ao mesmo tempo, entrei na Igreja São Benedito toda vestida de branco, véu e grinalda com flores de laranjeira para selar o meu destino e a minha vida com uma pessoa de quem só conhecia o nome: Genésio. Foi um dos dias mais tristes da minha vida. Quando eu começava a sonhar , a idealizar o amor, pois meu coração batia por outra pessoa, o meu amado João com quem queria me casar e ter filhos fui obrigada a desistir de tudo por uma atitude inconsequente de minha mãe. As pessoas na Igreja olhavam perplexas para meu rosto sem expressão, enquanto era conduzida ao altar por meu irmão. Ele também estava triste, não concordava com a mãe na questão de casamento. Acreditava que deveria haver amor entre as pessoas para se unirem. Em contraposição, a Igreja estava finamente decorada com rosas, palmas, mosquitinhos, lírios e cravos brancos, tule e organza uniam os bancos de madeira e laços de cetim pendiam no corredor da nave coberto com um pesado tapete vermelho de veludo. A família do noivo não poupou recursos para o casamento. A única pessoa contente nessa festa , além do noivo e sua família, era minha mãe. Alheia aos meus sentimentos pensando apenas no lado financeiro, afinal o noivo tinha uma posição social e financeira muito boas e tradicional pois tinha me casado com alguém da minha raça acreditava estar fazendo o melhor para mim. A família de João também tinha uma situação financeira razoável, não tão boa quanto a do Genésio, mas não trabalhava e era negro. Voltando dos meus devaneios meu noivo também não estava apaixonado por mim, afinal nem me conhecia . Para mim ele parecia branco demais, cabelo lambido, cara de “bolacha”, gordo, e usava suspensórios. Meu corpo era harmonioso, proporcional, tinha cabelos compridos, bem cuidados, olhos cor de mel e pele alva e macia e via nos olhos do Genésio a cobiça dos profanos. Meu corpo tremia ao pensar em suas mãos me acariciando. Ele parecia aceitar passivamente a imposição de sua família em me ter como esposa. Mas, se para ele era natural, para mim não. Tanto que, após a cerimônia, fomos para nossa casa e me tranquei no quarto não permitindo que meu marido entrasse. Ele esmurrou a porta mas não cedi. Foi dormir no outro quarto. No dia seguinte aconteceu a mesma coisa. Saía do quarto somente para ir ao banheiro e comer alguma coisa, quando ele não estava. Antigamente não existia lua-de-mel. Ele foi trabalhar no dia seguinte. Os casamentos também não aconteciam, aos sábados e sim dias de semana. Ele insistiu durante umas duas semanas, depois desistiu e frequentava casas de prostituição. Vivemos assim por um mês. Saí de casa, minha mãe não me aceitou mais, fui morar com minha madrinha e trabalhava em sua casa para custear minha comida e um quarto para dormir. Reencontrei meu grande amor e tivemos momentos de amor, carinho, dedicação. Fui muito feliz com ele. Descobri que estava grávida quando ele foi estudar medicina na capital. Estudante como poderia sustentar a mim e a nosso filho? Sua família não aprovou um filho fora do casamento e sem ter uma profissão. Perdemos o contato, apesar dele me prometer que voltaria para me buscar.

E a vida continuou. À noite a tristeza me invadia, o desânimo tomava conta do meu ser. Meu filho é quem me dava forças. Ele se mexia muito quando estava triste. Trabalhava na casa de minha tia, mas a gravidez impôs limitações. Não podia fazer todas as coisas que fazia antes. Minha tia não gostou e não queria que eu ficasse mais lá. Minha mãe soube o que estava acontecendo e antes que o bebê nascesse foi me buscar. Cuidou de mim e quando a criança nasceu, um menino franzino, miúdo, e pardo minha mãe me disse que me ajudaria a cuidar. Não importava a cor da pele e , sim, que era seu neto. Fiquei muito aliviada e consegui me tranquilizar após meses de sofrimento e angústia.

Catleya
Enviado por Catleya em 17/09/2013
Código do texto: T4485781
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