Fuga

Todos os dias ele passava por aquela casa, em seu carro semi-novo, recém comprado, sua carteira de motorista recém adquirida e sua vaga na faculdade há pouco garantida. Todos os dias ele a via na janela, aquela última pequenininha lá em cima. Seu olhar perdido na confusão do centro da cidade, seu cabelo perfeitamente preso em um rabo de cavalo, seus traços fortes, mas ao mesmo tempo delicados, sua expressão sempre muito séria.

Todos os dias, o mesmo trajeto. E ela sempre ali. Seu carro desacelerava lentamente, maquinalmente. Seu olhar percorria todos os três andares da casa estilo colonial e parava naquela janela. Ela não o notava, não fazia idéia de que se atrasava todos os dias para o jantar, apenas para admirá-la. Todos suas preocupações e distrações se esvaiam no momento em que virava aquela esquina.

Todos os dias, quando os raios alaranjados de fim de tarde atingiam seu quarto, ela levantava de sua mesa de estudo e ia admirar a vista. O centro da cidade não era exatamente atrativo, mas ela sentia reconforto ao observar os carros passando apressadamente, pessoas com o celular no ouvido, o ponto de ônibus sempre cheio, aquela padaria da esquina, com as mesinhas ocupadas de velhinhos aposentados, jogando xadrez despreocupadamente.

Todos os dias, após suas cinco horas de estudo diários, seu olhar se perdia no mar de prédios à sua frente e no pedacinho azul do oceano escondido entre os blocos de concreto. Todo dia, aquele pálio azul passava por aquela rua lentamente. Havia um rapaz no interior do veículo, mas não a notava. Parecia sempre aflito, nervoso, ansioso, mas ao mesmo tempo...Sereno. Provavelmente havia acabado de passar para a faculdade e ganhara o carro de seu pai.

Mas não importava, ele era apenas mais um que não a notava. Não sabia que seu olhar se perdia nos traços de seu rosto. Não sabia que seu coração palpitava por saber o que havia por trás de seu olhar angustiado. Pensamento tolos de uma mente solitária.

Sem perceber, a noite caía calmamente, seu olhar entrava em foco novamente. Saía da janela, tomava um longo banho e voltava à sua rotina.

Júlia Schneider
Enviado por Júlia Schneider em 16/04/2007
Reeditado em 12/03/2013
Código do texto: T452251
Classificação de conteúdo: seguro