Desculpa aí! EC

Marileide e André se separaram após quinze anos de casamento ( e mais seis entre namoro e noivado). Sem muito alarde, nem discussões, pois a rotina e os desencontros já prenunciavam o desfecho. Entre altos e baixos, idas e vindas, acusações e desculpas, salvaram-se algumas lembranças boas e um casal de filhos. Decorrido o tempo para os trâmites legais da separação consensual, cada um foi pro seu canto e fim.

Os dias seguiam seu ritmo, às vezes o vazio a incomodava, mas procurava sempre o equilíbrio entre a solidão e os novos planos, afinal, a vida tinha de continuar...

A fidelidade era um compromisso que sempre os acompanhou. Marileide confiava em André de olhos fechados. Nunca havia encontrado um motivo para desconfiar do marido.

Passados dezoito meses de separação, André resolveu fazer uma visita à ex, em nome da cordialidade e dos laços filiais. Ligou um dia antes para combinar o horário. Chegou com doze minutos de atraso, como era de costume. André arrumou a gola da camisa. Prendeu a respiração. Bateu na porta. Marileide deu uma última olhada no espelho para conferir o visual, afinal não queria parecer surpresa ou insegura.

_ Como vai Marileide?

_ Muito bem, obrigada. Entre André.

_ Com licença, Marileide. Você está bem? Continua bonita.(sorriso)

_ Obrigada. E você? Como vai a nova família? Soube que se casou.(leve sorriso e ar de serenidade)

_ Estou bem. Ajustando as coisas.

_ Que bom André.

_ É.

_ É.

Pairava no ar certo incômodo, mas a conversa prosseguiu:

_ Marileide, eu vim aqui porque preciso muito lhe contar uma coisa que me atormenta já faz tempo. (sem sorriso)

_ O que foi André? (ainda com ar sereno)

_ Eu tive outra mulher enquanto éramos casados, mas foi só no final, tá? É que às vezes eu me sentia rejeitado, você trabalhava demais, então conheci essa pessoa. Mulher muito bonita, por sinal.

Marileide empalideceu. As batidas do coração tomaram o lugar das palavras, na garganta. O pretenso ar de serenidade se foi. Não sabia o que dizer naquele instante que parecia uma eternidade, um pesadelo desses que a gente não consegue acordar. De repente sentiu o rosto esquentar. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. André permanecia imóvel. Olhou-o demoradamente, de cima para baixo, enquanto as lembranças passaram pela sua cabeça como num flash. A memória é algo realmente incrível quando solicitada. Respirou fundo e disse:

_Por que veio me contar isso agora? Remorso? Sinceramente, agora não me importa o que fez ou deixou de fazer com ela. Você não é, e nem nunca foi, o homem que imaginei. Pena que percebi só agora.

_ Mas Marileide, eu me sentia rejeitado!

_ Fora! Sai agora da minha casa! E veja se consegue dormir tranquilo.

_ Desculpa, Marileide.

Saiu sem fechar a porta da frente.

Como ele resume uma traição a um simples pedido de desculpas? Pensava Marileide, mais desapontada do que nunca esteve nesta vida!

Não havia o que fazer a não ser tentar esquecer. Os dias e a decepção passaram, como era de se esperar. Marileide sempre agiu com resignação.

André era colecionador de carros antigos. Tinha um VW Karmann ghia conversível vermelho, seu xodó. Gastava as economias em reformas e ajustes no carro e Marileide economizava nas despesas da casa para colaborar com o marido. Deixava de lado pequenos caprichos de mulher como fazer as unhas semanalmente ou comprar uma roupa da estação, de preferência, na oferta.

O carro estava guardado no rancho, atrás da lavanderia, onde André deixara algumas ferramentas e objetos. O comprador chegaria daqui a uns dez dias. A relíquia valia um bom dinheiro. Os dois dividiram os poucos bens sem brigas.

Domingo à tarde, Marileide vai até o rancho para procurar uma chave de fenda. Ao sair viu a lona empoeirada que cobria o carro. Por um momento olhou para ele, olhou para suas unhas sem esmalte e se lembrou de todas as economias que fizera para agradar André.

No canto da parede havia um cabo de enxada partido ao meio. Marileide, com calma e precisão pegou o pedaço de pau e deu vinte e um golpes, milimetricamente calculados de maneira que todo o carro ficasse amassado. Foram assim distribuídos: três golpes pelo tempo de namoro, mais três pelo noivado e finalmente, quinze pelo casamento. Lascas de tinta, de vidro e de lembranças ficaram espalhadas pelo chão. O estrago foi grande.

Com tinta spray vermelha, para combinar com o carro, ela deixou um recado no que sobrou do vidro dianteiro: Desculpa aí, André.

Fechou a porta, caminhou tranquilamente até a porta do banheiro, tomou um belo banho e foi ao salão de beleza.

O carro foi vendido no desmanche.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Desculpa Aí

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Mariacris
Enviado por Mariacris em 28/10/2013
Reeditado em 28/10/2013
Código do texto: T4545901
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