O Último Dia

Fazia uns três dias que tinha acabado minha temporada de bebedeira e já me achava quase refeito e pronto para voltar à rotina e consertar a pilha de computadores e notebooks que havia acumulado na oficina desde o último final de semana, pois meus clientes eram mais que simples clientes, tornaram-se amigos fiéis e preferiam esperar o fim de minha crise alcoólica sazonal a entregar os aparelhos nas mãos de outro técnico. Confiavam inteiramente em mim. Por isso, meio trêmulo, fiz a relação de peças que deveria comprar e tomei o ônibus em direção ao centro da cidade, não me atrevia a dirigir antes que as mãos e o cérebro parassem de tremer. Desci no ponto final, na Praça do Correio. Subi a ladeira em direção à Rua Santa Efigênia e entrei naquele barzinho escondido atrás da igreja e que eu conhecia há mais de trinta anos. Cumprimentei o Manoel e pedi a um dos balconistas que me fizesse um café solúvel sem açúcar, sentei no banquinho de costume e fiquei observando o tráfego de pedestres. Era um dia frio e chuvoso. Os vendedores de softwares e filmes piratas ofereciam seus produtos com um olho nos passantes e outro nas patrulhas da polícia que uma vez ou outra aparecia por lá tomando as muambas dos vendedores ilegais

Estava ali pensando em tudo e em nada ao mesmo .tempo enquanto aguardava o café. Fui despertado do devaneio por um homem que bateu duas vezes no meu ombro.

__Dá um real pra mim tomar um café _ disse.

Mas não foram os toques do ombro que me despertaram. Manoel, o dono do bar, cujos cabelos brancos permaneciam ali em sua cabeça, ao contrário dos meus, já tinha transposto a porta do balcão para expulsar o indigente.

__Sai daqui! Já te falei que você tá proibido de entrar aqui.

Quando finalmente olhei para o motivo da confusão fiquei surpreso. O homem não era, exatamente o que podemos chamar de um mendigo. Usava um sobretudo enorme que batia nos joelhos. A pele negra e o cabelo rastafári pareciam não combinar com os olhos azuis. Devia ter a mesma idade que eu, mas era mais alto e muito mais forte. Disse ao Manoel que pagaria o café do intruso.

__Mas ele não quer café, quer pinga.

Olhei de novo aquele homem e para o Manoel, todos pareciam tão derrotados quanto eu. Tinha cinquenta reais na carteira e nada pra fazer com eles, o que compraria seria com o cartão. Interrompi a expulsão e disse ao Manoel:

__Dá um café pra ele, ou uma pinga, que diferença faz?

__A diferença é que todas as vezes que ele entra aqui e começa a conversar com um freguês meu, o freguês nunca mais aparece.

__Oh Calpúrnia __disse o negro em tom teatral.

Já tinha ouvido aquele nome em algum lugar mas no momento tive que conter Manoel que tentava empurrar o negro para fora do bar. Mas o português baixinho e atarracado não era páreo para o outro que devia ter no mínimo um metro e noventa além de um físico de lutador de boxe. Não tinha notado isso antes com verdadeira atenção, mas aquele cara não poderia ser um mendigo, de jeito nenhum. Os empregados do bar já haviam transposto o balcão, decididos a expulsar o intruso. Toda a cena parou quando o homem enfiou a mão no bolso lateral do sobretudo. Os empregados interromperam o ataque, imobilizados. Manoel instintivamente se afastou . E eu fiquei me perguntando por que era atraído daquele jeito para todo tipo de encrencas. Aquilo seria um morticínio. Quando a mão saiu do longo bolso, não trazia arma alguma. O maço de notas de dólares, euros e outras moedas que eu não conhecia foram colocados em cima do balcão. O efeito foi imediato. O ajudante de cozinheiro deixou cair a tábua de bife. O rapaz do café olhou meio cético para a colher de madeira que empunhava. E cada vez que o homem enfiava a mão no bolso, trazia de volta um pacote de notas. Por que me pediu dinheiro se tinha toda aquela fortuna nos bolsos? O balcão do bar parecia pequeno diante de toda aquela riqueza. Manoel com seu olho clínico, já percebera a movimentação da polícia por ali, e diante daquela fortuna, enfiou todos os maços de notas dentro de um saco plástico e escondeu embaixo do balcão. Jamais poderia explicar aquilo se por acaso um policial viesse tomar um café ou comer uma coxinha.

Assim que as notas sumiram, aquele monumento da masculinidade caiu ao chão e repetia frases desconexas : __Calpurnia, Calpurnia... Brutus...

__Mas que diabo é Calpurnia?: __Perguntei.

__Era a mulher de Júlio Cesar, o imperador romano – disse o moço do café, que estudava numa faculdade de Direito.

__Eu posso te contar, dizia o homem agora sentado no chão do bar. __Eu posso te contar como vai ser seu ultimo dia, o último dia de cada um de vocês. Eu falei para que Júlio não fosse ao senado.

Só então me dei conta. Ou ele achava que tinha recebido o espírito da mulher do imperador romano ou que foi ela em outra encarnação.

Então ele segurou meu braço e confesso que senti o sangue gelando em minhas veias.

__No seu último dia de vida você vai encontrar um cachorro em sua por...

__Para. Gritei enquanto afastava a mão dele do meu braço. __Não quero saber, vai pro diabo! Disse isso e sai como um louco do local. Acho que nem paguei a conta. Mas se estiver vivo amanhã, volto lá e pago.

Todo ateu que se preza tem que descrer de sua própria descrença, de outro modo não seria um descrente absoluto. Naquela noite fiz uma análise rápida do meu ateísmo e vi que faltavam elementos tanto de lógica, quanto sensoriais e instintivos. Aqueles dedos segurando meu braço e congelando meu sangue não foram abstratos. O gelo chegou muito perto do meu coração. Quando fugi dali estava anestesiado e não me lembro como cheguei em casa.

Hoje de manhã enquanto fazia café e esperava dar seis horas, para ir comprar o pão, ouvi uns ruídos estranhos vindos da porta da frente. Abri a porta e nesse momento um verdadeiro furacão negro invadiu a sala. Era um filhotinho de labrador que pulava nas minhas pernas enquanto abanava o rabo freneticamente. Meu primeiro impulso foi de levar o cão para fora, trancar o portão que deixara aberto na noite anterior e voltar à minha rotina. Ia fazer isso quando peguei o animal para leva-lo, mas então olhei nos olhos do bicho. Eram de um azul profundo, não exatamente pela cor, mas pela expressão. Aqueles olhos pareciam conhecer o meu passado e meu futuro. Então lembrei de onde tinha visto aquele olhar e da frase inacabada., e comecei a tremer...

Não sabia o que ia fazer com aquele cachorro. Nunca tive nada contra animais, assim como não tinha nada contra crianças. Desde que fossem filhos de outros mas que não me incomodassem. Depois de dar as sobras do meu jantar ao cachorro, liguei para tudo o que pude encontrar na Internet com finalidades que diziam cuidar dos bichos. Depois de ser tratado como um traidor que pegava os animais e depois os abandonava, desisti. __Vou Colocar ele para fora do portão. Foi isso que fiz. Achei que o animal iria embora. Mas não foi. Ficou latindo e arranhando a porta, não sei como conseguiu entrar. Dai eu desisti.

Já que ela queria ficar comigo ia ter que me acompanhar naquele suposto último dia que eu ia viver.

São 23:55. Estou com medo e tomando umas cachaças. Descobri que meu cachorrinho é fêmea. Pode até ser um nome esquisito para um cão, mas dei-lhe o nome de Calpi, será um segredo entre nós. Dane-se. Eu comprei tudo o que tinha de salgadinhos “incomíveis" do bar. Ela comeu todos aqueles salgadinhos ruins do boteco. Faltam cinco minutos para a meia noite e ela começou a comer a bandeja de torresmos que eu dei pra ela. Fico observando quando ela olha pra cima e parece me agradecer com aqueles olhos tristes que os cães têm as vezes.... Falta apenas um minuto para terminar o dia. E os olhos de Calpi me contam que nunca vi um cachorro com aqueles olhos tão azuis . Nunca vi um cachorro capaz de olhar daquele jeito.

AMAURI CHICARELLI
Enviado por AMAURI CHICARELLI em 16/11/2013
Código do texto: T4573720
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