A PARTIDA.

Faltava pouco mais de hora para o sol se por. Já eram quase cinco da tarde, e ao longe, por detrás do pé de caqui Dona Eva acompanhava o manso guiar de Seu João conduzindo seu par de vaquinhas leiteiras para a estrebaria. A noite ia ser de “renguear cusco” pensou ela.

O sol estampando num céu anil, e nenhum sinal de vento. O ar gelado cortando o rosto de Seu João Faustino lhe trazia a certeza de que a geada seria grande. Como um bom observador o velho pensava nas mudanças do mundo, fez as contas, e chegou ao resultado que seria a quarta ou quinta geada do ano, e olha que o julho já estava por findar. Não faz muito tempo, coisas de dez quinze anos que não escapava uma manhã coberta do branco da geada. Ainda mais remotamente, lembrou-se da diversão de seus moleques que adoravam brincar com as grossas camadas de gelo que se formava em baldes, tanques e tonéis de água. Hoje as geadas sequer são tão fortes, bem como não enchem os dedos da mão durante o ano pensava o velho, que calmamente deixava seus animais na estrebaria ao resguardo da noite.

Mesmo aposentado, o velho João mantinha uma rotina de trabalho. Passava o dia na lida dos afazeres do seu sítio, seu pedaço de terra que levou anos de trabalho, e de economia para comprar. Eram trinta hectares que ficavam em uma cidadezinha encravada no coração do Rio Grande, mas não muito distante da Capital. Tinha pouco mais de dez mil habitantes. Foi com o suor do seu rosto, trabalhando em suas terras de sol a pino, domingo a domingo que o Velho João ostentava seu maior orgulho: o estudo que dera aos seus filhos.

Por anos viveu da planta de algumas quadras de arroz, e de seu pequeno rebanho e suas ovelhas, de sua criação de porco, galinhas, e de suas vaquinhas de leite. Quando se aposentou, decidiu não passar tanto trabalho, era hora de descansar. Mas jamais ficar parado. Por isso resolveu arrendar vinte hectares de sua terra aos gringos que recém haviam chegado na cidade, eles iriam plantar arroz e soja. Nas outra dez Seu João Faustino lidava com suas criações.

De vida ativa vez por outra Seu João acompanhava reuniões e mobilizações do Sindicato de agricultores da cidade, entidade que ele mesmo ajudou a fundar. Nos tempos difíceis o velho sabia que não fosse a união de todos muita coisa ainda não haveria de ter chegado ao campo, não fossem suas lutas. Com orgulho no olhar, a cada visita dos netos contava dos dias de mobilização, enfrentando chuva e frio para que se conseguisse a aposentadoria pra quem trabalhava no campo. Na sala havia uma porção de porta retratos registrando esses momentos. Uma das preferidas trazia milhares de pessoas cobertas por guarda – chuvas sendo assistidas por uma centena de policiais em frente ao Palácio Piratini.

No entanto não pense que João Faustino era radical, uma das coisas que mais lhe incomodava, era ver uma porção de gente querendo terra de graça, coisa que o deixava irritado. Lembrava-se dos quinze anos de economia que fazia com as porcentagens que o se patrão lhe pagava, para que ele pudesse ter comprado seu pedaço de chão.

Terminou de tratar os animais e seguiu para casa, ia tomar um banho, sentar-se perto do fogão de lenha, tomar algumas cuias de chimarrão, e aguardar pela janta assistindo a novela das seis, e ir dormir. Dormia cedo, era de costume, tanto dormir, quanto acordar cedo.

Ao redor do fogão de lenha é que ele e Dona Eva aproveitavam para conversar, lembrar o passado e remoer as saudades dos filhos e netos que estavam espalhados mundo afora. Passavam o ano a esperar pelos trinta e um de dezembro, único dia em trezentos e sessenta e cinco que podiam estar todos reunidos, isto quando não faltava um, ou outro filho, coisa que acontecia na raramente.

Somente dois de seus filhos ainda moravam na cidade. Carlos Eduardo, o mais velho, e que pouco os procurava, pois sempre estava ocupado e envolto em reuniões políticas, e a Maria Eduarda, casada com um comerciante, dono de um pequeno mercado estabelecido no centro da cidade. Era ela quem os atendia quando havia necessidade.

Quando retornava da sala onde acabara de atender um telefonema de sua filha Mariana, Dona Eva percebeu que algo estava errado. Havia um silêncio angustiante, chamou pelo seu amado João e ele não lhe respondeu, coisa que a deixava furiosa. Detestava quando ele fazia que não ouvia suas palavras. Chamou-o novamente, e nada... Olhou e viu a cuia espatifada no chão esparramando erva – mate por toda cozinha. Uma aflição tomou conta de seu coração, uma dor parecia lhe apunhalar o peito, sua garganta soluçava, suas mãos trêmulas tentavam reanimar o Velho João Faustino. Em vão.

Com a força e a coragem que as mulheres apresentam nas horas mais difíceis, Dona Eva cerrou as pálpebras do velho, que silenciosamente partira. Não havia volta, seu companheiro de cinqüenta e cinco anos de casamento fora embora sem lhe avisar. Um vultuoso fio de lágrima escorreu por sua face enrugada pelo tempo.

Douglas Eralldo
Enviado por Douglas Eralldo em 24/04/2007
Código do texto: T461791
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