VIDA

Cris sentia-se tão cansada! Tudo o que mais queria era poder dormir dias a fio. A vida, quando não é satisfatória e há a necessidade de abster-se de viver, em prol dos demais, se torna cansativa, despedaçada, prestes a deixar de existir. Prestes a deixar de existir? Mas não existia mais, ela não tinha vida. Tudo se resumia fazer com que todos estivessem sempre bem, transformar seu lar em um reduto de paz. Foi a opção mais burra que já fizera na vida. Mas estava tão envolvida em problemas mais sérios que achou todas as outras coisas pequenas demais. Então optou não por ela, mas já estava tarde demais para corrigir o que foi o maior erro de sua vida.

Sorria, brincava, fingia que estava tudo bem. Mas, por dentro, só havia cacos que não mais poderiam ser colados. Deixar de existir em vida é uma das piores coisas que pode acontecer ao ser humano. Mesmo que, aparentemente a causa seja nobre, os outros. Só rindo mesmo, pensava ela. Então todos ficam bem e felizes e eu conheço somente a angústia de “não ser”. Mas o tempo passou e agora estava tarde para mudar as coisas. O que lhe restara? Uma imensa vontade de chorar, sempre sozinha, que era engolida e mascarada por um belo sorriso de quem acha a vida ótima. Reclamar com quem se a decisão foi tomada por ela mesma? Bem feito, agora tem que pagar por ter achado que a vida dos demais valia mais do que a sua.

Acordava, levantava-se correndo da cama em busca de um cigarro que a ajudasse a ter prazer em ver que amanheceu. E assim transcorria o dia: cigarros e café o tempo inteiro. E já estava irritada com os comentários sobre o fato de fumar muito. O pulmão era dela. O resto havia sido destruído para dar alegria e bem estar aos que a rodeavam. Então, calem-se! Ela ajudou pessoas a se curarem, a morrerem, a se cuidarem, a serem felizes. Que, pelo menos, lhe dessem a chance de escolher como queria morrer.

Remédio para acordar e remédio para dormir. Sua vida se tornara artificial, pois precisava de medicamentos para suportar o insuportável. E não é insuportável carregar, dentro de si, somente vida não vivida e a sensação de que, pelo menos, deixou os demais felizes? Realmente, só rindo. Então, ver todos à sua volta felizes à custa de sua própria vida é o que se pode chamar de solidariedade, ou burrice? Burrice. Quem foi o imbecil que disse que se pode fazer os outros felizes se você mesma está infeliz? Não, somente sendo feliz podemos proporcionar o melhor para os demais.

Como diz Oswaldo Montenegro, em uma de suas últimas músicas, A Lógica da Criação: “Se o sexo é tão proibido/Por que ele criou a paixão/Se é ele que cria o destino/Eu não entendi a equação ... Se Deus criou o desejo/Por que que é pecado o prazer?”, etc. Se Deus criou a mulher, por que é que ela se nega a ser plena? Porque optou por se omitir, se ocultar, se anular em prol dos outros, do bem estar alheio.

Cris ria e ria muito. Como não rir da própria burrice, da nulidade na qual se transformou?

Mas, enfim, fizera sua escolha. Então? O jeito era aproveitar os pequenos prazeres da vida com intensidade. Não existe como dormir por dias a fio e também isso não é solução para nada.

Ela pegou a bolsa, pintou os olhos e saiu em direção ao cabeleireiro. Cortaria o cabelo, iria à uma boa livraria, escolheria o livro mais interessante, andaria um pouco pela rua, pegaria um táxi, iria para casa. Um bom banho, uma cama confortável. Abriria o livro e se deleitaria com o que lhe dava tanto prazer. E diria: Bom dia, vida!

10:48 horas – 03/01/2014

Emar
Enviado por Emar em 03/01/2014
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