AS ÚLTIMAS COISAS DO MUNDO (CAPÍTULO 4 - O ÚLTIMO MEDO)

Após voltar para casa, Jurandir sentia seu corpo cansado. De fato, estava velho e seu companheiro mandava sinais constantes de enfraquecimento. Mas, Jurandir que nunca foi de todo corpo, adorava testar estes pseudo limites do físico, como quando, após passar muito tempo bebendo, o corpo lhe mandava sinais de sono e ameaçava repelir qualquer uma ultima dose. Jurandir sabia que ele aguentaria muito além dos limites que ele próprio fingia impor, e sabia haver uma recompensa para os bravos guerreiros que ultrapassam esses limites, desde que consigam manter a consciência. A cerveja, por exemplo, depois deste limite, volta a ficar boa, e chega a ficar adocicada; o corpo ganha novo ânimo, e a voz a rouquidão que torna ela mais rústica, e ao mesmo tempo, mais nobre.

Contudo, deitou na cama para repousar. Deitou de costas e com as mãos cruzadas, como repousam os mortos, e esse pensamento ou essa imagem ou as duas coisas fizeram com que despertasse seriamente para a questão que até então, para ele mesmo, se aparecia como simples demais. Sua vida estava chegando ao fim. Que benção era poder envelhecer e estar preparado para isto, porém, apesar de até agora Jurandir ter se mostrado bastante despreocupado em relação ao que o leitor certamente já prevê que irá ocorrer ao final da história, este mesmo leitor não deve supor que isso não o atemorizava. Ele apenas tentava manipular a própria consciência com doses excessivamente altas de otimismo, o que é bem comum para pessoas cuja experiência de vida lhe ensina que viver sem isso é real demais, e por isso dói demais.

Pois bem, o problema é que o otimismo, inevitavelmente, se torna uma mentira, e as mentiras por mais hábeis que sejam, se tornam sempre menos eficazes quando voltadas para si. Mentir para os outros é mais fácil, e embora digam que toda mentira tem perna curta, essa mesma afirmação pode ser uma mentira de perna muito grande. Porém, quando tentamos nos enganar, inevitavelmente a nossa consciência entrará em alguma forma de contradição e achará algum ponto de escape uma hora ou outra. No caso de Jurandir, este ponto começou no capítulo anterior e chegou ao ápice - como se fosse possível achar o ápice de um ponto - no momento em que ele olhou as suas mãos cruzadas sobre a barriga. Tinha medo de morrer. Pensou em ligar para o seu médico e perguntar tudo que nunca teve curiosidade ou coragem de questionar: O quão grave era seu estado? Era realmente grave? Havia tratamento? Mas tratamento para o quê? Não sabia. Sabia apenas que estava velho. Velho e cansado.

Porém, como se Jurandir soubesse que este momento era o ápice, como se pudesse saber o que nós aqui de fora sabemos, se tranquilizou, pois não poderia sentir mais medo do que o medo que teve naquele instante. E assim, mais calmou ponderou naturalmente - sem excesso algum de otimismo nem pessimismo - a questão: Estando preparado ou não, iria morrer. Além do mais, ser engolido pela vida dói mais do que ser tragado pela morte. Pensava ele. E eu complemento da seguinte forma. Pois antes de te engolir, a vida te mastiga, quebra teus ossos e bebe das forças que outrora foram tuas. Já a morte, que pode ela fazer senão matar? E a dor dos que ficam é dor da vida e não de outra coisa, como a dor dele desde que sua amada se fora. Levantou da cama, havia ainda muito que fazer naquele sábado.

Lucas Esteves
Enviado por Lucas Esteves em 07/01/2014
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