AS ÚLTIMAS COISAS DO MUNDO (CAPÍTULO 5 - A ÚLTIMA ESMOLA)

Consertou um chuveiro queimado, pregou dois quadros que comprara alguns meses antes, escreveu uma carta, tentou consertar um rádio antigo, desistiu de consertar o rádio antigo e depois de ensaiar o repertório que tocaria a noite, limpou com paciência seu bandoneon. Assim, em apenas um parágrafo, foi-se embora a tarde de sábado. Talvez eu esteja sendo injusto para com estas coisas, mas a injustiça é uma habilidade que deve ser praticada para que seja aplicada justamente. Então, se não me atenho nestes detalhes, de modo algum significa que não são importantes, mas também não quer dizer que signifique outra coisa.

Aprontou-se para sair. Em uma mochila colocou um caderno grosso, três livros e algumas canetas. Não fosse pela sua idade, pensaríamos que estava indo para a escola. Saiu com a mochila nas costas, o bandoneon nos braços e um sorriso simpático no rosto. Entrou no seu carro e andou apenas algumas quadras em direção ao bar em que ia tocar, chegando lá começou a fazer volta no quarteirão, até que encontrou o que procurava e estacionou.

- Aí está você meu velho! – disse Jurandir ao sair do carro. Carregava somente a mochila.

- Onde mais eu estaria? – falou o outro. Um morador de rua de uns 50 anos ou mais e com uma longa barba.

- Não sei, viajando, quem sabe? Na verdade, fico imaginando o dia em que irei te procurar e você terá partido.

- Ora, partido para onde?

- Isso só você pode me dizer.

- O “onde” dos mendigos é onde tiver um pedaço de pão, alguma coisa para beber e alguns cigarros.

- Bem, um destes você já tem. – falou Jurandir, aludindo ao fato de que o mendigo mordiscava um pedaço de pão seco.

- E o resto aposto que está aí dentro – falou o mendigo apontando para a mochila em tom de brincadeira.

Jurandir sentou ao lado do mendigo e falou.

- Não. Na verdade tenho algo melhor – e entregou a mochila ao mendigo.

Este abriu e vendo os livros, sorriu.

- Pode ficar com a mochila também.

- Obrigado, Jurandir. Estes exemplares parecem muito bons, e eu estava precisando mesmo de um caderno novo, e canetas. Quantas canetas! Quantas páginas neste caderno! Caberia um romance aqui. Mas isso não está certo, amanhã é o seu aniversário e você que está me presenteando. E, você sabe, eu não tenho nada para lhe dar.

- Não se preocupe com isso, meu velho. Quantas letras você não escreveu pra mim sem pedir nada em troca?

- Mas você não sabe se eu escrevo por você ou por mim.

- Não importa. Você também não sabe se eu te dou estes livros por você ou por mim.

- Não. Não sei.

- Bem, preciso ir. Vou tocar hoje no bar do Juca.

- Vão te dar uma festa?

- Mais ou menos isso.

- Hum, ficarei longe.

- É uma pena, mas depois do que você fez não te deixariam chegar perto, nem mesmo no meu aniversário.

- Eu fiz o que tinha que fazer.

- Não, você fez o que queria fazer.

- Talvez seja a mesma coisa.

- Talvez não.

- Ora, Jurandir, você sabe o que eles fizeram com o Toninho Maluco!

- O Toninho fez aquilo com ele mesmo.

- E por que faria isso?

- Talvez por que seja maluco?

- Não a esse ponto. Enfim, aqueles idiotas tiveram o que mereciam.

- De qualquer forma, eram uns idiotas, nisso concordamos.

Ambos sorriram. Estavam sentados na escada de um sobrado antigo, abandonado, e nisso Jurandir se levantou. Com um gesto de continência seguiu até o carro, abriu a porta e, antes que pudesse entrar, o mendigo lhe chamou.

- Hey, Jurandir!

- Diga, meu velho louco!

O mendigo deu o último pedaço de pão para uma pomba que o rodeava, colocou a mochila sobre o colo e se inclinando um pouco para frente como se fosse contar um segredo, gritou em alto e bom som.

- O mundo é um lugar para se olhar nos olhos!!!

Jurandir, ao invés de ficar espantado com aquele grito rouco, como os outros que passavam pelo local, pareceu se divertir, mas, com curiosidade, perguntou:

- O que é isso?

Já em um tom normal, o mendigo respondeu:

- Apenas o meu presente para você.

- O mundo é um lugar para se olhar nos olhos. Gostei. Obrigado.

Falou isso e entrou no carro, pensando consigo mesmo.

- Um bom lugar meu amigo, um bom lugar.

Lucas Esteves
Enviado por Lucas Esteves em 08/01/2014
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