AS ÚLTIMAS COISAS DO MUNDO (CAPÍTULO 6 - A ÚLTIMA FESTA)

Andou três quadras e estacionou o carro bem em frente ao bar, sentindo-se um pouco envergonhado por não ter ido a pé. Isso por que a preguiça do autor reflete a do personagem, pois se este caminhasse três quadras, aquele - no caso, eu - teria que reescrever a última cena. Mas, como vocês já devem saber, a preguiça é sempre uma inimiga traiçoeira, pois tivesse eu feito aquilo, não perderia tempo com estas explicações; além do que, com certeza não faria mal algum uma pequena caminhada ao nosso velho. Porém, contudo, entretanto, existem coisas que não cabem ao autor decidir. Ou melhor, até cabem, mas no momento de tomar essa decisão, nem sempre pensamos nisso como uma decisão, e a coisa passa batida. Somente mais tarde, olhando para trás, nós damos conta de que aquilo ao qual no momento não demos a devida atenção, era algo digno dela. Mas isso já está próximo demais da realidade, e a realidade é perigosa. Voltemos ao nosso velho Jurandir.

Houve um tempo em que seu aniversário era comemorado com bolos e brincadeiras, mas depois disso e antes do agora, tantos anos se passaram, tanta coisa mudou, de tal modo que, como poderia ele, em já avançada idade, lembrar de bolos? E das brincadeiras de infância? Das suas pernas saudáveis que corriam depressa? Do seu pulmão ainda virgem que se enchia de ar? Lembrava. Jurandir era assim, tinha algo de especial, especial como aquele bolo que despertou a sua lembrança mais remota, aquele momento em que a vida realmente começou.

A festa não era fechada ao público, mas este era pequeno e totalmente conhecido por Jurandir. Alguns dizem que um bar faz sua clientela pelo preço; outros, pela qualidade da comida e da bebida; ou ainda, pela qualidade do atendimento. Talvez ainda seja a música, a localização, o fato de passar ou não jogos de futebol aos domingos, ou tudo isso junto; ou talvez ainda, sejam somente as cadeiras. Há quem diga ainda que seja o inverso, o público é que transforma o ambiente. Estes dirão que onde se reunirem boas pessoas para beber, o ambiente será adorável. Talvez tudo isso seja verdade.

Aproximou-se do dono do bar, um velho gordo de bochechas vermelhas e o abraçou, recebendo deste uma boina com seu nome bordado. Com seu presente na cabeça cumprimentou a todos, dedicando atenção ora aqui, ora lá, tendo que conversar sobre política com um sujeito idoso com ideias anarquistas; ler uma nova poesia de uma mulher de meia idade recém divorciada, e que desde então retornara a escrever poesias, coisa que não fazia desde antes do casamento; ver fotos das férias de um casal de amigos, inventar algumas desculpas, fazer algumas promessas, provar vinhos, cervejas e charutos; até que chegou o momento de subir no palco. Para isso bastava uns três passos e um degrau.

Após tocar três ou quatro músicas, sentiu um mal estar e pediu um copo d’água. Juca, preocupado, aconselho-o a descansar um pouco, mas Jurandir, depois de secar o copo d’água, pediu mais um copo de vinho:

- Que o show continue!

O momento era bonito demais para ser interrompido. Todo show era bonito demais para ser interrompido. Talvez a vida fosse bonita demais para ser interrompida. Seguiu tocando a próxima música com alguma dificuldade, mas no intervalo dela, ao tomar um bom gole de sua taça de vinho tinto recém servida, recuperou suas forças, e na música seguinte já estava em sua melhor performance. Nisto, viu que um jovem parara na calçada para escutar sua música. O rapaz segurava um cigarro com uma mão e mantinha a outra mão no bolso. Este sim fumava com estilo. Isso o alegrou. Deu uma piscada para ele que foi retribuída, voltou a se concentrar na música e nas pessoas do bar, e quando a música acabou o jovem não estava mais lá.

Relatar os pormenores da festa - embora interessante - não seria essencial para um bom entendimento da história e para saber o que hoje se passa na cabeça de quem esteve naquela festa. Pois todos estavam bêbados. Dizem que os bêbados perdem a memória. Eu digo que apenas lembram o essencial. E o essencial daquela noite, era que Jurandir estava magnífico naquela sua festa que - parecia ele já saber disso - seria a sua despedida.

Lucas Esteves
Enviado por Lucas Esteves em 09/01/2014
Código do texto: T4642661
Classificação de conteúdo: seguro