AS ÚLTIMAS COISAS DO MUNDO (CAPÍTULO 7 - O ÚLTIMO CAPÍTULO)

Já era quase seu aniversário e lembrou que neste dia almoçaria com seu filho, não sendo conveniente se atrasar, ao menos não agora que estavam se acertando. Então se desculpou e se despediu dos seus amigos antes do relógio terminar seu turno. Estava bêbado demais para dirigir, ofereceram-lhe carona, mas disse que precisava mesmo dar uma caminhada, além do mais eram apenas algumas quadras até o seu apartamento. E partiu orgulhoso, com seu bandoneon de pendurado. Orgulhoso pelos amigos que tinha, orgulhoso por não ter orgulho demais, pois aprendera que quem tem orgulho demais acaba afastando as pessoas, e a solidão, por mais tentadora que às vezes seja, não é boa para uma vida toda. E são estas as pessoas - as orgulhosas, mascaradas com falsa modéstia, quem acham que a sua maior qualidade é a humildade - são elas que dizem que amizade verdadeira é coisa rara, pois o orgulhoso quer ter amigos sem, primeiramente, ser amigo. Jurandir não tinha limites nem censuras para as amizades que mantinha. Era amigo do seu médico e do mendigo. Se eles também consideravam-se amigos de Jurandir, isso era coisa que não podia decidir; cabia a ele somente a sua parte.

Tão doce era o ar da noite que se fechasse os olhos, conseguiria imaginar-se - sem grande esforço - rodeado por flores. E tão gostosa era a brisa que, quando fechou os olhos, além das flores, imaginou-se, e mais do que isso, sentiu como se realmente estivesse em frente ao mar. E nesta praia de flores, a maré era uma graciosa garçonete que levava para as sereias um banquete de gardênias, camélias, violetas, jasmins e também de margaridas. E o mar ficava perfumado, e o perfume tão doce chegava até os piratas mais terríveis do atlântico, e estes piratas já embriagados de rum, mas enternecidos pelo aroma do mar, se desarmavam e com madeiras e linhas viravam artesãos, e depois, com seus instrumentos que já não eram mais de ferir, tocavam e cantavam para as sereias no fundo do mar.

Tudo isso era tão forte que ele, ao abrir os olhos, ficou aliviado por se ver novamente entre aqueles conhecidos bares. Pois, por mais bela que fosse aquela praia, lá não era o seu lugar. Fora ela - com suas flores, piratas e sereias - apenas um ato de criação de Jurandir, um ato possível por uma pequena brecha que o mundo lhe deu - com aquela brisa e aquele cheiro doce - mas que agora se fechara para que essa criação tivesse vida própria. E tendo vida própria, para aqueles piratas e aquelas sereias, Jurandir não existia; assim como, para nós, não existe nenhum Deus, mesmo que, de certo modo, ele possa existir. Mas isso Jurandir não sabia, e na verdade, nem eu, estou apenas inventando, ou, quem sabe, criando.

Jurandir chegou em frente ao prédio e esperou uns minutos até que eu decidisse o que fazer com o parágrafo anterior, mas não estava impaciente, antes disso, se ria com a minha lentidão, pois na imaginação dele, e neste ponto também para o leitor, tudo já estava mais do que pronto. O que, para ele, foram alguns minutos, para mim, foram dias angustiantes sem inspiração. Bem, enfim eu me pus a escrever e Jurandir pode subir. Já no apartamento, sua vontade era ir direto ao quarto e dormir, mas sem saber por que, antes disso, largou o bandoneon no sofá e olhou em direção a porta de vidro que dava para a sacada, onde esquecera uma taça de vinho da noite anterior, ao lado da cadeira de balanço. Sem saber por que, decidiu que aquela taça de vinho não podia dormir ao relento; sem saber por que, caminhou em direção à porta; sem saber por que, abaixou para pegar a taça e por que estava velho e doente seu peito doeu, e talvez por que estivesse pronto, ou talvez por que fosse a hora, ou talvez por que estivesse exagerado demais, ou talvez por tudo isso junto e mais um pouco, caiu sentado na cadeira que continuou a balançar por alguns instantes, como se estivesse sendo embalada por alguma música escondida debaixo de todo aquele silêncio.

Lucas Esteves
Enviado por Lucas Esteves em 10/01/2014
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