DESENCANTO



Deu várias voltas na cama mas não conseguia dormir. A insónia não a largava, ferrada como um cão raivoso.
Algum tempo antes, olhava  o teto através da penumbra  e escutava o resfolegar do marido, o corpo pesando imenso sobre si. Então aguardou que ele finalizasse, continuando a fixar o candeeiro e depois de o sentir arfar e finalmente deitar-se virado para o outro lado da cama, levantou-se e foi à casa de banho purificar-se.
Quando voltou ele já roncava, a carne satisfeita.
Deitou-se devagar, para não o acordar.
De olhos fechados, depois abertos para a escuridão, passaram-lhe pela memória os últimos tempos: A vida aventurosa do filho, que lhe havia dado uma única alegria, o neto, a luz dos seus olhos e a sua existência triste e vazia ao lado de um homem que não amava por ser boçal e indelicado, que se servia dela como uma refeição e ao longo de muitos anos fora incapaz de um gesto de carinho. Também não tinha especial orgulho no resto da família, os irmãos e cunhados que só pensavam em dinheiro e em ficar ricos, não tendo qualquer pudor em a enganar quando das partilhas por morte de seu pai, o seu amado pai.
Por fim, fartou-se de estar deitada sem conseguir adormecer, levantou-se e silenciosamente esgueirou-se para o quarto contíguo, encostando a porta.
Foi até á janela e levantou muito devagar a persiana.
Olhou a rua.
Caia uma chuva fininha que depois engrossou, em bátegas contra a janela. A rua estava deserta, aquela hora nem um carro passava, transeuntes nem vê-los. Estava tudo a dormir. A escuridão era interrompida apenas por algumas poucas luzes que teimavam em brilhar, sobretudo os candeeiros de iluminação pública, luzindo timidamente no meio da invernia.

Então  sentiu-se sozinha. Uma imensa angústia apertou-lhe a garganta e encostando o rosto à vidraça, deixou que grossas lágrimas deslizassem pela sua face, concorrendo com a chuva que escorria do lado de fora.
 



 
Nota: Deste lado do Atlântico "casa de banho" é o nome dado ao banheiro.