O homem parado na porta é alguém que eu conheço, tenho certeza, ou só um rosto comum, quem sabe? Existe uma multidão de bilhões, usa barba e está de terno surrado, parece mentira, naquele ambiente apertado, sentado na minha cadeira não posso dizer que tenha exatamente cinquenta, ou sessenta anos, pois estou a uns dois metros da porta, os bancos acabaram, há algumas pessoas desalojadas, em pé, o homem foi o último a chegar, pediu o formulário e encostou o ombro esquerdo no portal, mexe as mãos, acho que fuma (só uma suspeita), olha no relógio e às vezes coloca a mão na barba, reflexivo, tão diferente de todos que me causa orgulho.
                Já estou sentado esperando um formulário há três horas, ele chegou só agora, nem têm vinte minutos e já esta impaciente ou entediado e com alguma coisa melhor para fazer, nesse mundo não há nada para fazer, eu não tenho nada melhor para fazer, meu emprego é ficar aqui e esperar o formulário, carimbar e colocar no envelope, desço duas quadras e entrego em outro escritório onde espero mais algumas horas, dizem que isso nem seria necessário – ouvi em uma rádio clandestina uma vez - mas o governo têm que empregar as pessoas e criou empregos depois da grande recessão de 2065.
                Faço o meu trabalho ha cinco anos de segunda a sexta oito horas por dia, aos sábados vou ao cinema coletivo e domingo na igreja virtual, tenho uma mulher e uma filha de seis anos, conversamos sobre os mesmos assuntos, banais, depois vamos para cama, minha filha vai dormir sempre oito da noite, eu fico vendo o jornal e Marlene fazendo tricô.
                Há dois dias tenho pensado em tudo, uma forma de largar essa rotina, porém sou funcionário público concursado e tenho uma filha para cuidar, não existe emprego, nem lugar para ir, sufocados pela zona urbana hiperpopulosas, não há mais nada a fazer a não ser viver. O dinheiro é pouco e quase não conseguimos passar o mês sem privações.
                -Mas que diabo – disse o homem perto da porta – que demora em pegar um papel.
                Nunca alguém reclamou, sempre tivemos uma vontade, uma necessidade de rebelião, está no sangue, na alma humana, mas nunca reclamamos.
Tudo ocorreu depois do segundo senso em 2075 o governo democrático decretou uma ordem de silêncio em repartições para carimbos e essa era uma lei muito respeitada, todos estavam obrigados a esperar pacientemente, um fiscal registrava o nome de quem desobedecesse à lei, este poderia perder o emprego e ir para o turno das lixeiras, todos tinham pavor dessa punição.
                -Senhor é o sistema – disse à atendente que tinha olhos arregalados e mandou chamar o fiscal.
                -Esta merda está lotada de idiotas esperando formulários, preciso de um formulário número cinco e é só você atravessar a porcaria do corredor, e retirar um formulário número cinco e me entregar, como uma pessoa pode ficar calma se você não se meche?
                Ouvi aquelas palavras e não queria acreditar, criei um ídolo na minha cabeça, um herói, eu tive vontade de falar, me comprometer e me juntar a ele na rebelião, mas lembrei da minha filha, o compromisso com a família com o sustento e silenciei como os outros, covardes, cordeiros.
                -Chame o fiscal – disse a recepcionista – o senhor conhece a lei? Você sabe das consequências, meu Deus, onde está esse fiscal?
                -Que lei? Que consequência? Sabe muito bem que quem vem buscar o formulário cinco não teme nenhuma consequência.
                -A lei 30085, está tudo nela – a recepcionista entregou um panfleto que o homem rasgou - seu comportamento é inadmissível!
                A maioria das pessoas olhava para baixo evitando o contato visual, muitos viraram o rosto ao contrário, eu estava maravilhado, porém me mantinha quieto, motivado, porém com medo, tive uma dor de estômago, acho que foi ansiedade, o que aconteceu a seguir me surpreendeu.
                -Sabem de que se trata o formulário número 5? – Disse o homem, como se falasse para uma plateia.
                Ninguém respondeu, havia cinquenta pessoas dentro daquela sala, todas esperavam o seu próprio formulário, com suas numerações, mas nosso trabalho era levar para algum lugar e nada sabíamos sobre esses formulários, segundo o regulamento não deveríamos saber.
                -Senhor – disse a recepcionista – sabe que é proibido revelar o conteúdo dos formulários, a resolução presidencial 89563...
                -Estou cagando para resolução presidencial.
                -Como – disse a recepcionista – onde está fiscal?
                O homem não tremeu a voz e continuou.
                -É um pedido de eliminação corporal, pelo qual pago vinte e seis moedas, para que eliminem o meu corpo após a cremação – disso o homem com a voz arrastada, como se aquelas não tivessem significado nenhum – isso mesmo, quero morrer, para isso devo ter o formulário 5 carimbado e sua taxa paga, para não prejudicar a minha família que ainda insiste em viver nesse mundo, com esse formulário pago tenho direito a morrer, caso contrário minha família sofrerá as penalidades.
                A mulher da recepção pegou o formulário numero cinco e entregou para o homem. Um gesto brusco da mulher, que tinha cabelos pintados de louros e usava óculos de aros quadrados fora da moda, ela balbuciou uma “toma e some”, como se não quisesse ouvir mais nada. O resto do povo estava amedrontado, confuso e porque não dizer triste,  a senhora ao meu lado chorou, procurou conter as lágrimas, um rapaz parecia sufocado.
                Olhei de canto de olho o fiscal se escondendo no banheiro, parece que ele não queria se envolver.
                O homem saiu e a vida continuou sem modificações, como se ele não existisse, então horas se passaram até entregarem o meu formulário, a atendente carimbou e coloquei no envelope, esperei na sala de entrega algumas horas, lá nada aconteceu, minha cabeça martelava tudo de forma surrealista, como um filme, uma aparição sobrenatural,depois  de entregar o formulário fui para casa.
                Clara estava brincando na pequena varanda do apartamento cedido pelo governo para funcionários, no centésimo andar, fui até ela e fiz um afago, sentada no sofá a minha mulher levantou, andou devagar, viu que algo em mim havia mudado, olhamos a rua, do centésimo andar a vida parecia ter uma chance, olhei o por do sol, centenas de prédios iguais, vidas humanas, tudo aumentando, minha mulher se aproximou mais um pouco e em um movimento brusco nos abraçamos.
                -Aonde vamos parar? – Perguntei para ela, quando Clara se distraiu com um brinquedo contei tudo. – Está tudo tão difícil, uma hora o homem era meu herói na outra tinha pena dele.
                -A vida não para, o mundo continua, tudo vai continuar - ela balançou os belos cabelos negros e continuou - nessa vida a nossa missão é viver...
                -É acho que tem razão – fiz um afago no cabelo macio dela - o que temos para o jantar?
                -Uma coisa que você gosta. – Disse me apertando.
                -E eu quero sobremesa. – Gritou Clara do canto da varanda.
                
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 27/01/2014
Reeditado em 27/01/2014
Código do texto: T4666940
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