Minha Primeira Tragada

Naquele tempo, não tão longe assim, os jovens e as crianças ainda brincavam, as ruas eram nossas, não por que as dominávamos com armas e ameaças, mas por que eram tantos meninos que ficava até difícil dos carros passarem.

Brincávamos de tudo e brigávamos por tudo também. Mas a coisa só ficava séria mesmo quando alguém violava o mandamento sagrado de não xingar a mãe do próximo. Ao mesmo tempo, porém, que as brigas eram frequentes também pareciam serem raras, tanto que quando acontecia alguma ameaça de rixa o alvoroço estava feito. Os amigos cercavam e deixavam os dois no meio, uma gritaria se iniciava e os rituais aconteciam para ver quem daria o primeiro golpe.

Havia a famosa "troca de cabelo", onde um dos espectadores, normalmente o maior da turma, triscava na cabeça de um e depois na do outro e ordenava que quem tivesse coragem pegasse de volta o seu cabelo. Os tapas começavam aos berros de "eu quero o meu cabelo", ''eu quero o meu cabelo". Quando isso não dava certo, tinha ainda o teste do cuspe. Alguém colocava a mão espalmada entre ambos os valentes, como se estabelecendo uma barreira, e depois a tropa incentivava um dos dois a cuspirem primeiro dizendo que o alvo era a mão divisória, era só um deles cuspirem que o do meio retirava o braço e o jato de saliva atingia o adversário, a briga então estava formada.

Naquele tempo, nossas brigas não tinham armas, não tinham ameaças, não tinham vingança, não tinham mortes.

O problema é que os tempos mudam e algumas crianças quando crescem também. Foi o que aconteceu na minha rua, no meu bairro e acho que na cidade toda. Aos poucos os mais velhos foram mudando de corpos, de rostos, de roupas, de gostos. Só uma coisa eles não mudaram: continuaram ser para nós, os mais novos, os exemplos. Eu que fazia parte do grupo dos menores restava segui-los.

Os maiores criaram um hábito em nossa rua de fazer fogueiras à noite e nos reunir em volta para conversar, falar sobre tudo, compartilhar experiências, muitas vezes falsas, mas sempre contadas com juramentos de serem verdadeiras - coitado de quem duvidava. Os mais novos apenas ouviam e vez ou outra interrompia para fazer alguma pergunta. As noites de fogueiras eram para nós, os pequenos, verdadeiros momentos de iniciação de formação para a vida. Era ali que ocorria a mais pura transmissão de saberes. Muitos mitos que nos seguiriam por toda a vida foram concebidos às margens daquelas chamas.

Os garotos mais velhos falavam de tudo: de garotas, de sexo, de garotas, de sexo, de sexo de novo, das mudanças que estavam ocorrendo nos corpos deles, dos novos amigos ainda mais velhos, das festas que eles frequentavam escondidos e foi assim que eles começaram a falar de cerveja, cigarros e drogas. E drogas na minha infância era cola e tinner, até que ouvimos falar de maconha.

Uma noite os mais velhos não acenderam a fogueira, partiram ao entardecer e só retornaram mais tarde, quase na hora que tínhamos que entrar para dormir. Os menores, demos o nosso jeito e fizemos nossa programação. Quando eles voltaram percebemos algo estranho. Alguns deles haviam cheirado cola, e um outro cara, que não pertencia à nossa rua, estava com um cigarro de maconha entre os dedos.

Nós, o grupo dos pequenos, sentamos no passeio e observamos eles tomarem a rua. Se moviam de forma estranha e lenta, faziam gestos como se esquivassem de algo, falavam de monstros e demônios, de poderes e espadas. Ficamos vidrados naquilo. Eu queria ver o que eles estavam vendo, se eram como nos desenhos de super-heróis que eu assistia, se a rua estava mesmo cheia de monstros, qual a cor dos poderes e com que armaduras eles estavam. Fui dormir naquela noite cheio de sonhos para sonhar.

Na noite seguinte a fogueira foi acessa e eu estava cheio de expectativas, cheio de dúvidas para tirar. Mas logo de início os mais velhos tiveram uma ideia. Eles estavam com vontade de fumar, porém ninguém tinha dinheiro. A missão seria sair todos em bando e procurar por todo o bairro bitucas de cigarros usados para que pudéssemos tragar, e a promessa era que até os mais novos fumariam dessa vez.

A cassada foi animada, tinha algo a mais que nos motivavam. Olhávamos para todos os lados, parávamos em portas de bares e não tínhamos vergonha nem medo de recolher todo tipo de ponta de cigarro, sem se importar com que bocas haviam passado ou que pés haviam pisados.

Quando voltamos a fogueira estava quase se apagando. Juntamos mais alguns pedaços de madeiras e sacolas velhas e reavivamos as chamas. Sentamos em volta como já nos era hábito e entregamos todo material recolhido para os mais velhos. Eles selecionaram, escolhendo os mais limpos e maiores e descartaram a maioria jogando ao fogo. Entregou uma a cada um e um deles ensinou como fazia. Eu apenas olhava, primeiro tinha que aprender para não ser zuado depois por todos. Depois das instruções os mais velhos acenderam suas bitucas primeiro, fumavam com habilidade, e depois um a um dos menores foram acendendo os seus e tentado dar suas tragadas.

Um dos que passava as instruções perguntou se eu não iria acender, era meu irmão, dois anos mais velhos do que eu. Quando ele me perguntou, tomei coragem e falei que fumaria só se o meu cigarro fosse um "baile". As fogueiras já haviam me ensinado muito, sabia que o de baile era mais gostoso, uns tinham até sabor de chocolate, canela e de menta, e deixava um cheiro melhor do que o cigarro normal, também viciava mais. Todos riram. Ele vasculhou as bitucas que ainda tinha e me entregou um de cor marrom. Era o de canela.

Tentei acender e não consegui, tinha que dar uma tragada mais demorada. Ele acendeu e me passou, segurei entre os dedos e olhei a ponta vendo-a brilhar com o piscar de inúmeras estrelinhas amareladas, coloquei na boca e puxei. Senti a fumaça encher a minha boca trazendo um gosto entre o doce e o amargo, pensei um pouco em o que fazer e antes de eu tirar o cigarro da boca para lançar fora a fumaça me engasguei e comecei a torci desesperadamente. Saiu fumaça pelo nariz, pela boca e quanto mais torcia mais me engasgava. Alguns meninos riram, outros nem ligaram e meu irmão me socorreu. Consegui recuperar a respiração e fui direto para casa dormir. Nunca mais fumei na minha vida, aquele engasgo me salvou.