FAXINA DA ALMA

E absorto em pensamentos, ele estava sentado no sofá em sua sala, olhava para a TV desligada, sem pensar em algo efetivamente específico, apenas mantinha-se complacente com a cena ao seu redor que emoldurava a sua realidade, quando o transe em que se encontrava em espiral para dentro de si foi se desfazendo, aos poucos se tornou mais tangível o momento, reparou mais atentamente, na já não tão fina camada de poeira que descansava sobre a estante de vidro negro, correu os olhos pela pequena sala e percebeu que pelos cantos sobre o chão revestido em porcelanato pérola esmaltado, também não era possível ver mais o brilho do belo piso, o que se via era apenas pó.
Então, desferindo um tapa sobre o braço largo do sofá de camurça marrom, viu subir a névoa de partículas poeirentas que ali ha tempos fizeram morada, tossiu com a irritação que isto causou em seu nariz, espirrou seguidamente, arranhou a garganta e finalmente clareando os pensamentos, falou para si mesmo, preciso fazer uma faxina.
Precisava mesmo, seu apartamento sempre organizado e cuidadosamente mobiliado de forma simples, porém, com móveis de bom gosto, estava imundo, louças de dias acumulava-se na pia e sobre a bancada de granito ébano, roupas para serem recolhidas do pequeno varal em sua área de serviço, um cesto repleto de outras peças de roupa de cama e banho para ainda serem lavadas, e os banheiros já imploravam para serem higienizados, não era um grande apartamento, pouco mais que 60 m2, mas, para ele naquele momento, a idéia de ter que enfrentar um dia de limpeza de tudo isto, parecia um dos 12 trabalhos de Hércules, tão grande era seu desanimo, há tempos carregava nas costas diversas decepções, profissionais, pessoais e sentimentais, um período deveras difícil vivia naquela fase, sem muito dinheiro e depressivo, arrastava a maior das frustrações, a consigo mesmo, a de se sentir incapaz e sem animo para muitas coisas, principalmente para um dia de faxina.
Ainda sentado, novamente correu os olhos pela sala, e entre a decoração, sobre a estante de vidro empoeirada, ao lado da TV, algo finalmente prendeu sua atenção, um livro, mas para ele não era apenas mais um dos muitos livros que possui, era o seu livro, havia participado de uma seletiva para novos autores e fora escolhido para compor um projeto com alguns poemas, onde, através de uma coletânea, poderia ter de uma até dez poesias suas publicadas, mas, acabou sendo presenteado com a escolha dos 12 textos que enviou, à abertura da edição, e finalmente em página inteira do livro, uma dedicatória especialmente gentil e carinhosa do organizador do projeto.
Assim, não foi simplesmente à satisfação de ter sido escolhido e participado de forma destacada do livro que prendeu sua atenção, o que realmente veio-lhe a mente, foi à promessa feita a um amigo.
Amigo este, que desde os primeiros rabiscos ensaiados em uma rede social, que sugeriam algo apenas parecido com um poema, não poupou elogios, muito mais por incentivo do que pela real qualidade do que lera, amigos verdadeiros são assim, falam a verdade, só que às vezes até mentem para nos verem felizes.
Retroagindo então nos pensamentos à alguns meses atrás, lembro mais sobre este grande amigo, especificamente as três visitas que recebera dele, sempre chegando com seu sorriso largo e até meio escrachado, um forte abraço e o costumeiro cumprimento me chamando de “brother”, assim nos tratamos, pois, já se vão mais de 30 anos desde que nos conhecemos em um campinho de terra batida, e com nossas pernas finas corríamos atrás de uma bola.
Ele chegou, sentou, conversamos, bebemos as poucas latinhas de cerveja que trouxe consigo, recordamos de muitas histórias e de muitos amigos, rimos de aventuras e loucuras que a muito estavam entorpecidas na memória, em uma destas visitas chegou trazendo junto outro grande amigo que a tempos não nos reuníamos os três, estava ele em um momento difícil de crise conjugal e precisando de apoio, e como não poderia deixar de ser, o grande amigo de todos o arrastou junto para rirmos e bebermos os três, foram três visitas em um período de três meses, todas especiais, repletas de nostalgia, alegria e sentimento de companheirismo e amizade fraterna.
E aí, lembro da promessa que a ele fiz, de que se um dia por ventura um livro meu fosse publicado, o levaria de presente até ele, e amanhã, sábado, dia propício para ir visitá-lo e conhecer seu estúdio, pois, ele se aventura, munido de sua enorme criatividade, veia artística e talento na arte de tatuar,  aí, novamente olho em volta e vejo a minha realidade, amanhã preciso fazer faxina, mas sabe, ele esteve aqui quando mais precisei, pois, as visitas foram no período mais difícil que passei, em nenhuma delas, ele ao menos olhou para a sujeira ou pó que estava acumulado em meu apartamento, sentou-se  de forma esparramada e confortável em meu sofá empoeirado e nem ligou, em uma das visitas, dormiu no pequeno e abafado quarto de hóspedes, onde eu nem me dei conta de trocar o jogo de cama que lá estava a meses, e recebi dele no dia seguinte, apenas elogios de que a muito não dormia em uma cama tão boa e confortável, em nenhum momento se preocupou se minha geladeira estava repleta ou vazia, o parco café da manhã com pão dormido e requeijão, foi por ele considerado um “breakfast” de príncipe com o gentil comentário, que, tratado tão bem assim, ele se acostumaria e ali acamparia em morada.
Percebi finalmente, que a sujeira e desleixo no  qual meu apartamento se encontrava, não tinha importância alguma para ele, que a minha companhia, um abraço e um bom papo, eram o que ele esperava somente, não um lugar brilhando, uma geladeira repleta, lençóis de cetim, mas, apenas um amigo, um bom amigo e tudo já estava perfeito.
Sabe, a faxina na casa pode esperar, importante é a faxina nos valores da alma que preciso fazer, amanhã, sábado, é dia de pagar uma promessa.