Dono do Próprio Nariz

Se o destino porta-se como mestre das providências definitivas, impiedoso ou misericordioso em suas ações, a fé não passa de um meio duvidoso. Nesse foco, todas as incertezas, idas e vindas, decepções e conquistas da vida se perdem não apenas na obviedade do fim, mas na previsibilidade dele, já arquitetado pelo destino em sua obra. Assim, não há o sorriso que ainda não exista, não há desejo que venha de surpresa, e não há carro que passe sem prestar atenção na figura solitária em cima da mureta que divide a enorme e movimentada avenida.

Dono de seu próprio nariz. Foi o que disse ao dar as costas à família e nunca mais retornar para casa. Senhor de suas próprias ações e, dito isto, largou o emprego para viver a vida ao seu modo. Irremediável falência do fígado, e o médico de um pronto-socorro vira as costas para o paciente, que se viu rendido pelo próprio corpo. Não é de se admirar que, diante do zunido dos veículos, uma última decisão lhe devolveria o controle.

Não escolheu um candidato, atirou-se ao certo destino baseado em sua fé. O corpo amassou o capô do carro e rolou por cima dele, enquanto o vidro dianteiro adentrava em grossos pedaços o automóvel. Uma, duas, três voltas marcadas de preto no asfalto antes de colidir com um poste de luz, que se apaga com o choque.

Cheiro de borracha queimada, céu estrelado, luzes vermelhas se acendem desacelerando os carros e curiosos impedem a circulação de outros veículos. Entre as conversas, uma testemunha diz que o motorista atropelou o rapaz. Com o celular em mãos, outra pessoa informa que o sujeito dentro das ferragens faleceu e que o socorro está por vir. Desperto, e com o amargo gosto de sangue na boca, não sentia o sono chegar; não, não havia salvação próxima.

Dormiu, mas acordou. O corpo vencido pela dor apagou e deu lugar ao resgate. A família do motorista foi ao hospital para perder o chão sob os pés; lugar melhor para ver o sentido de viver se esvair não existe. Autorizaram o transplante de fígado para a vítima que, além do órgão abalado, sofreu leves escoriações, apenas. Que alguém seja salvo neste dia, rogou para seus botões a mulher do falecido motorista.

Pés descalços, avental branco e um estado de leveza fornecido pelos analgésicos. Uma beata assimilaria tal personagem a um anjo circulando vagarosamente os corredores claros do hospital. Ainda cambaleante, o rapaz procurava pela saída. Chegou à porta, respirou fundo, e saiu da brancura do edifício para a clareza de um novo dia. Uma turbulência de veículos rasgava o asfalto em alta velocidade. Senhor de suas próprias ações parou em frente à faixa de pedestres, e esperou o semáforo abrir.

Ricardo Sorrenti
Enviado por Ricardo Sorrenti em 30/04/2007
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