Conto ( Fluxo de Consciência )

Para os Garrastaz. Inclusive eu.

l(Cena: Um cabeludo de jeans e camiseta preta espera no ponto de táxi próximo a Praça 29 de março. Curitiba. Dia lindo de sol. Mais calor senegalês sem nenhum vestígio de chuva. Ela está sentando ao banco, celular na mão direito, na esquerda segura um cigarro que de vez em quando tira uma longa tragada. Solta a baforada devagar saboreando bem a fumaça. Aguarda até o terceiro toque para sua interlocutora, uma linda baterista ruíiva de 32 anos, atende:)

—Oi linda! Tá ocupada?

—Não, babe. Pode falar.

—Desculpa. Desculpa te interromper. A parada é a seguinte: o porra louca do Farah do estúdio tomou um porre na segunda conosco, um dia depois do show, e confundiu a bolas. Acabou marcando outra banda nosso horário. Disse que pensou que a gente ia tirar duas semanas de folga! Ora veja, se tem cabimento, a gente entra em estúdio em junho e vamos nos dar o luxo de parar duas semanas com três músicas prontas pra finalizar e ensaiar? O cara deve ser maluco. Mas, enfim, estou te incomodando para perguntar se você faz alguma objeção em quarta que vem?

—Gato, vocês sabem que nas quartas é meu dia sagrado de tocar meu projeto paralelo com a Ivana e sabem também que somos as melhores amigas e colegas de casa. Não tem como adiar. O nosso dia é terça, certo? Quem comeu bola foi o Farah...

—Eu sei, lindeza...

—Pois então! Quarta não vai rolar.

—Quinta o Marcel tem curso de pós-graduação da faculdade... Merda, então tá babe, deixa que eu vou fazer uns contatos aqui e vejo se tem outro estúdio. Se importa de ensaiar naquela espelunca que a gente ensaiava antes? O equipamento é meio “falhado”, sacumé? Se eu conseguir, rola?

—Claro, gatão! Ei, hoje é aniversário do Zé! Cê vai ‘tar lá, né?

—Óbvio aquele meninão é o filho que sempre quis ter e não tive. Não tem como faltar!

—Então vai fazendo teus contatos, mas a gente se fala à noite. Não tome nenhuma decisão precipitada. À noite a gente conversa.

( Ele joga o cigarro, se despede com “um beijo, até a noite” e entra no táxi que parou naquele momento no táxi. Quarenta e três anos e ele ainda não tinha acontecido. Contudo essa banda era promissora, já estavam planejando e compondo para o segundo disco, em junho entrariam em estúdio bem azeitados e finalizariam tudo. Parecia que tudo entrava nos eixos e o que ele sempre desejou desde os treze anos estavam começando a render frutos. Já tinham uma boa base de fãs mas precisavam de mais. Até os 46 a banda daria um belo “up” no seu orçamento. Sentou no banco do carona enquanto dizia as últimas duas frases. Essas falhas de comunicação sempre o exasperavam. Preferia perder alguns órgãos no mercado negro que ferrar tudo com banda que ele arregimentara com muito esforço. Agora estava tocando e escrevendo com seus irmãos de armas. Desligou o telefone. E suspirou. E sussurrou mais para ele mesmo do que para qualquer para quem quer que fosse):

—Como dá dor de cabeça montar uma banda!

(O taxista deu-lhe “bom dia” e perguntou-lhe o trajeto. O cabeludo de roupa preta desculpou-se, respondeu ao cumprimento e passou o endereço para o “chauffer”. Ficou em silêncio por alguns instantes enquanto pensava em algo coerente, preciso e que não precisasse de tanto incômodo. E não lhe tomasse tanto tempo. Tinha um “frila” para fazer. Nada que lhe tomasse mais que duas ou três horas. E essa agora, porra! Duzentas pratas fáceis. Se ele não tivesse agora que contatar os outros membro da banda que insistiam em deixar seu celulares em modo de caixa postal. Não consegui falar com nenhum deles. “Ligação gratuita, deixe seu recado após a sinal”. O que Graham Bell acharia disso? Duro de responder então nem pense senão você fica louco. Esticou as pernas no banco do carona ).

— Então o senhor tem uma banda? O que você tocam? Quantos são?

—Quatro rapazes e uma bela moça.

—Solteira? (taxista mais estranho esse...)

—Lésbica.

—Como disse?

—Nada, esquece. Sinceramente, meu caro, não sei responder o que a gente toca. Acho inclassificável. Uns dizem que é heavy metal, outros que é hardcore e por aí vai. Sou meio como o Hendrix e sempre achei que rótulos só são bons pra marcas de picles, saca? Todo mundo rotula tudo. Fulano é roqueiro. Sicrano é sambista. Beltrano é... Sacou?

—Sertanejão?

—Passo longe.

—Não gosta?

—Não. Esses caras pra mim é rangido de carroça. Nosso som é batida frontal de caminhão. Sirene de polícia. Guerra nuclear. Ataque aéreo. Bomba de efeito moral e gás lacrimogêneo ( que agora anda na moda ), tumulto em favela...

—( o taxista corta.) Tumulto em favela, é?

—Temos uma música que fala de bala perdida, tiroteio em rua de terra e gangues de periferia...

( taxista emenda uma história )

—Tinham dois maluquinhos que eu conhecia e que volta e meia vinham pedir meu táxi pra levar eles até o Campo Comprido...

—Conheço bem aquelas bandas...

(taxistas continua .)

—Então, a corrida dá vinte e cinco eles sempre davam “gruja de galo”, pagavam o dobro. Quase todos os dias. Mas outro dia o colega falou que era roubada. Que os “homens” estavam na campana dos dois. Dá outra vez que vieram eu disse “ pô, sempre fui correto com vocês, mas chega! Não vou arriscar meu couro por vinte e cinco, cinquenta, cem, se o colega de trás quiser levar vocês, boa. Não vou me arriscar, sei o que vocês transam. Não sou alcaguete e também não sou bandido. Tenho a patroa e três bocas pra adiantar. Imagina cair numa blitz por qualquer dinheiro do mundo e ir parar no xadrez? Cê sai de casa trabalhador e não volta. Caiu na mãos dos ratos. Virou bandido...

—Ah, mas esses canas são um achacadores mesmo. Só querem saber que alguém “molhe a mão” deles. Tudo cabeça de bagre, meu. Entregam a rapadura por qualquer que você tenha no bolso. Por isso que eu sou macaco velho e não meto a mão em lugar nenhum. Não me misturo com bandido nem com polícia. Não confio em nenhum dos dois grupos...

—Doutor, o que você faz na banda?

—Canto. Ou melhor. Dou uns gritos roucos e loucos e escrevo as letras e as poesias.

( taxista agora olha para o cabeludo de preto e o cabeludo de preto fita pela primeira vez os olhos do taxista demoradamente ).

—Doutor , sabe que eles maluquinho que eu ‘tava falando? Essas alturas devem estar debaixo da terra ou dentro do xilindró. Vixe, Maria!

—Olha, bicho. Eu já vivi o lado de lá e o lá de cá. Posso te garantir. Tô prá completar quarenta e quatro em setembro se eu sobreviver até lá e posso de dizer que nosso lado é muito melhor. A gente fatura pouca grana, mas fatura umas gatinhas, toma umas geladas, vira umas doses e vai dormir com a cabeça feita. O “sono dos justos”. Quanto “malandrão” que a gente conhece tá dormindo nos pés do outro com chinelo de travesseiro no chão frio, com 30, 50, 60, 70 outros vagabundos? Eu vou e venho. Pago minhas contas. Acabei de quitar minha casa. Tô louco pra colocar uma nega lá dentro pra me dar uma força na faxina e no rango. Se não pintar, cara, até melhor. Pra ficar na maciota. Bato roupa, limpo casa, banheiro, lavo louça, faço rango, nunca dependi nem da minha mãe que quando começou a tesourar meus embalos saí de casa pra nunca mais voltar. Ela morreu. E quer saber? Nem fui ao enterro. Tava adiantando meu lado em Natal.

—Qual é estilo da sua banda?

—Barulho.

´-É aqui, doutor? Chegamos? Deu catorze mangos sua corrida no desconto.

(Cabeludo de preto fuça no bolso esquerdo da calça jeans e acha quinze para pagar).

- Pode ficar com o troco, meu irmão, agora vou a luta! Que a vida é uma labuta!

-Agradece, mano. Bom dia e bom final de semana, pro doutor. Do barulho, então?

-Do barulho. E bom trampo e bom final de semana pra você também....

Curitiba, 14 de fevereiro de 2014, 23 graus célsius, Chuva em Curitiba! Verão.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 14/02/2014
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