Poeira Estelar

Lá estava ele novamente, deitado sobre o capô do carro e olhando fixamente para as estrelas. Ele adorava fazer isso, principalmente de madrugada, enquanto a cidade inteira dormia e a força das luzes era menor, deixando o céu bem estrelado. E enquanto ele olhava para o céu, viajava. Viajava por toda aquela vastidão azul-escuro, com um capacete de vidro e um macacão amarelo bem ao estilo David Bowie, seu cantor preferido. Inclusive, era a trilha sonora para esse fim de domingo.

Estava tocando "Ziggy Stardust" no velho toca-fitas do seu carro, um Chevette 85 prata, muito bem conservado por sinal. Ele gosta muito dos anos 80 e faz o máximo para se sentir, sempre que pode, mais próximo dos melhores anos da sua vida. Uma vida longe da repartição, do terno e da gravata, do ar condicionado frio nas costas, do chefe calvo e barrigudo que vive gritando com ele. Enquanto olha para as estrelas e viaja, ele volta ao seu mundo particular, onde tinha uma banda de rock progressivo e fazia sucesso. Onde os solos de sua guitarra arrancavam gritos histéricos da plateia. Voltou ao seu tempo de colégio, quando andava com jaqueta de couro preta, tomava Sukita e seu maior sonho era ser um astro do rock andando pelo país em sua Harlley-Davidson. Pois é, isso tudo ficou pra trás, e tudo que ele tem agora são suas lembranças, enquanto olha pras estrelas. Está tocando "Starman" agora, e ele viaja mais longe ainda, vai até o planeta do cinema. Estava passando "E.T.: O Extra-Terrestre." e ele tinha chamado a garota mais linda da sala para ir com ele. Até que não foi difícil pra ela aceitar, ele era bastante popular, pois sua banda sempre tocava nos eventos culturais da escola. Iriam até fazer um show durante a festa de formatura, no final do ano. Mas ela não apareceu. Ela deu certeza que viria. Ele ficou lá, esperando ela até o último momento, em frente a bilheteria. Quando faltavam apenas cinco minutos para o início do filme, ele desistiu de esperar, comprou a entrada, passou no balcão e comprou pipoca e um copo grande de Coca-Cola. Estava arrasado, nunca iria imaginar que poderia levar um bolo daqueles.

De volta ao capô do carro, uma lágrima corre pelo rosto. Ele toma mais um gole da cerveja longneck e confere as horas no relógio de pulso. São 2:45 da manhã. Dentro de algumas horas ele tem que voltar pro seu escritório sem guitarras, sem jaquetas de couro preto, sem garotas dando bolo na porta do cinema. Onde só existe o terno escuro e a gravata cinza listrada e a única música que consegue ouvir são os gritos do seu chefe gordo e calvo. Ele tenta não pensar nisso mais uma vez. Se concentra em David Bowie. Agora está tocando "Space Oddity". Ele fecha os olhos e volta pra sua vastidão azul-escuro. Em sua viagem sideral, ele chega ao planeta triste. Porque ele tinha que ir parar ali? Em sua frente há um caixão e seu pai está lá dentro. Ele se lembra que estavam voltando de um show. A última coisa que ele ouviu de seu pai foi:"E aí, se divertiu?". Quando ele abriu a boca para agradecer pelo presente fora de época, uma luz forte de farol invadiu o interior do carro e depois o breu.

Ele abre os olhos, desgostoso. Foi ali, naquele planeta, que sua vida teve que tomar um outro rumo. Por ser o mais velho dos três irmãos, precisou procurar um emprego para ajudar a mãe nas despesas de casa. Não sobrou mais tempo para a banda, para a guitarra, nem para as sessões das oito no cinema do centro da cidade. Agora, tudo que ele tinha sonhado em ser, se dissolvia em um tom cinza. Seu mundo perfeito entrou em colapso, e tudo que lhe sobrou foi a lembrança, enquanto olhava as estrelas.

O relógio de pulso desperta, indicando que são três da manhã. Bem, está na hora de voltar ao planeta Terra, onde os sonhos não existem e a realidade ingrata te esbofeteia ao som de risadas mórbidas e um olhar cruel, insano e sádico. Ele toma o último gole de sua longneck, desce do capô do carro, entra, liga os faróis e engata a ré. Ele dá uma última olhada para as estrelas, depois fecha os olhos e mais uma vez seu sonho se transforma em poeira estelar para depois se dissolver no vasto e vazio azul-escuro.