VIDA DE CÃO (Ou Cachorrada)

Gotas de suor brotavam e lhe escorriam pelo pescoço, a camisa estava completamente encharcada. Já tinha andado a pé por léguas e léguas, feito um cachorro vadio e sem dono. Queria saber porquê não havia linhas de metrô para todos os pontos da cidade. E, também, porquê, atraso dos atrasos, ainda não tinham instalado um sistema de refrigeração do ar numa cidade quente como o Rio de Janeiro, transformando os bairros todos em aprazíveis shopping centers a céu aberto.

Parou na beira de uma calçada e esperou que o sinal fechasse para atravessar a rua. Suspirou profundamente. Além do calor outra coisa insuportável também lhe atormentava o juízo – e esta nem uma sombra ou uma brisa fresca podiam atenuar. Remorso, arrependimento. Um imenso sentimento de culpa que tornava aquela caminhada sob sol intenso uma verdadeira via-crucis, onde tentava expiar um terrível pecado.

O sinal fechou. Os primeiros carros pararam junto à faixa de pedestres. Estava distraído, demorou a atravessar. De repente percebeu um motorista olhando para ele com curiosidade.

Suava abundantemente, tinha as feições contraídas. O motorista olhava para ele, com um tranqüilo distanciamento de refrigerada superioridade, balançando a cabeça ao som de alguma música que devia estar tocando dentro do carro, e que os vidros fechados, por causa do ar condicionado, impediam que do lado de fora se ouvisse.

“Tá olhando o quê, ô babaca?!”, rosnou, com raiva, encarando o outro, em sinal de desafio.

O olhar gelado do motorista o seguiu, impassível, durante toda a travessia, até chegar na outra calçada.

Tornou a suspirar.

Precisava se controlar. Ninguém tinha culpa.

Ou melhor: ninguém além dele. Vítima de si próprio, da sua insensatez, da sua irresponsabilidade, da sua luxúria, movidas todas a cerveja gelada e muita caipirinha.

Logo se viu novamente tomado por uma incontrolável irritação, preso num congestionamento absurdo de pessoas que andavam lentamente pela calçada.

“Lesmas... Lesmas... Pra quê essas pessoas saem de casa pra se arrastar pela rua e sempre no meu caminho?...”, bufou, contrariado.

Viu-se cercado. Esfregou a mão pelo rosto, agoniado, num súbito acesso de claustrofobia. Esgueirou-se entre duas senhoras, forçou a passagem, esbarrou num garoto que vinha em sentido contrário, empurrou uma mulher gorda, meteu o cotovelo num grandalhão e seguiu adiante, ouvindo alguns xingos e muitos protestos indignados.

Finalmente encontrou caminho livre pela frente.

Suspirou, aliviado. Apressou o passo.

Mas logo o pesado fardo da culpa voltou a incomodá-lo.

Por que tinha feito aquilo? Por que tinha se permitido fazer uma coisa daquelas? Se havia alguém que não merecia sofrer, era a Ana. Tão doce, tão meiga, tão amiga... Gostava dela de verdade, como jamais tinha gostado de nenhuma outra. Mas bastara um dia de bebedeira e uma atitude inconseqüente para por tudo a perder. Bastara uma cachorra com uma mini saia provocante, com um par de coxas colossais à mostra, e muita caipirinha na cabeça para o desatino acontecer.

Ele respirou fundo, tentando evitar aquela lembrança que teimava em retornar, trazendo em si, apesar de tudo, apesar da dor e do arrependimento, uma tênue ponta de satisfação e prazer, que somente fazia com que aumentasse ainda mais o seu sentimento de culpa.

O churrasco no sítio era para festejar o aniversário do filhinho de um casal de amigos. E chamava-se Lu, a tal cachorra da minissaia e das coxas colossais, com uma camada de pelinhos louros por cima. Era uma morena alta, de sorriso bonito e corpo perfeito, que era amiga de umas amigas da Ana e dona de péssima reputação. Ela o tinha provocado o tempo todo, primeiro com demorados e insinuantes olhares, depois com cruzadas de pernas absolutamente reveladoras e, por fim, quando as caipirinhas já tinham derrubado meio mundo, e Ana, de pilequinho, já tinha se retirado para tirar uma sonequinha dentro de casa, oferecendo-se acintosamente.

Próximo a esquina, um motorista buzinava insistentemente diante de um edifício.

Lu aproximou-se da churrasqueira para olhar as carnes que estavam na brasa, deixando que ele, o churrasqueiro da vez, se deliciasse com a vista do seu amplo decote. Ela estava suada, tinha a pele queimadinha de sol e o sorriso com que o contemplou quando o encontrou com o olhar perdido entre o vão dos seus seios, além de evidenciar o avançado estado alcoólico em que se encontrava, mostrava claramente onde ela queria que aquilo terminasse.

“Huuummm... Essas carnes estão uma coisa louca...” , ela disse, inclinando-se sobre ele. “Assim, minha dieta vai pro bebeléu...”

Ele fez cara de espanto.

“Dieta?”, perguntou, mirando-a de cima a baixo, gulosamente. “Quem falou que você precisa fazer dieta?”

Ela sorriu orgulhosa.

“Você não acha que eu estou gorda, não?”, ela perguntou, esfregando a mão pelo próprio abdome, arduamente malhado, sem um milímetro sequer de gordura.

Ele inclinou a cabeça, examinando-a detalhadamente.

“Gorda? Tá brincando...”

Ela exibiu a cintura, fazendo charme.

“Ah... Eu preciso perder uns dois quilos... no mínimo.”

“Que isso?!”, ele protestou. “Pra quê? Quem gosta de osso é cachorro.”

Ela riu gostosamente.

O som estridente da buzina desarrumou-lhe os pensamentos definitivamente.

“Ô! Pára com essa buzina aí, pô!...”, gritou, irritado com muito mais coisas do que simplesmente aquela demonstração de falta de civilidade.

O motorista o ignorou e tornou a buzinar.

“Ô meu chapa! Pára com essa buzina, porra!”, reclamou, enlouquecido.

O sujeito olhou-o com desdém.

“Ih! Eu buzino o quanto eu quiser. Não f...!”, respondeu, desaforadamente.

Ele fechou os punhos e deu dois passos na direção do carro.

Ao vê-lo se aproximar, com os olhos faiscando de ódio, o sujeito se perturbou e, aparentemente com medo, tentou se explicar.

“Estou chamando a minha filha no edifício...”, argumentou, ressabiado.

“Porra! Então levanta essa bunda mole desse carro e vai lá chamar ela, porra!, em vez de ficar aí buzinando que nem um babaca!”

“Ih! Não f...! Tá nervosinho? Vai arrumar um marido”, resmungou o sujeito, entredentes.

Ele avançou.

“Como é que é?”, perguntou.

Há tempos que estava doido para arranjar uma confusão, só para ter a oportunidade, de morder um pescoço, como um bom doberman feroz. E vinha aquele imbecil desafiá-lo daquela maneira, irritando-o ainda mais.

O sujeito tentou fechar o vidro, assustado. Não teve tempo. O violento murro explodiu em cheio no nariz.

Descontrolado, ele segurou a cabeça do coitado e bateu com ela seguidas vezes contra o volante do carro, fazendo a buzina disparar.

Algumas pessoas começaram a se aproximar, perplexas com a violência.

Ele se afastou, ofegante, andando apressadamente.

Ao fim de dois quarteirões, a risada de Lu voltou novamente a ecoar em seus ouvidos.

“Olha... Mas se eu engordar, a culpa vai ser tua... Vou logo avisando...”, ela apoiou-se nele, de modo provocante.

“Minha?”, ele segurou-a pela mão.

“É... Você é um excelente churrasqueiro, sabia? Tá deixando minha boquinha nervosa...”, disse ela, mordendo os lábios e fechando os olhinhos.

“Ah, é? E o que você quer que eu bote na tua boquinha?”, ele espetou uma lingüiça com o garfo. “Uma lingüiça bem apetitosa?”

Ela deitou a cabeça para trás e riu, divertida.

“Ou uma picanha beeem molhadiiinha?...”

Ele fechou os olhos e sacudiu a cabeça, na esperança de conseguir afastar aquela lembrança que o perseguia.

Como tivera coragem de fazer aquilo? E logo com uma amiga das amigas da Ana... Na frente de todo mundo... E ainda por cima com uma cachorra como aquela Lu, a de pior fama entre todas elas...

Menos de meia hora depois, quando Lu e ele voltaram para junto da churrasqueira, sentiu imediatamente um olhar acusador queimando-lhe a pele.

Gabriela.

Pronto, logo, logo, Ana ia saber de tudo.

Lu limpou a boca com a ponta dos dedos e se afastou, satisfeita, rebolando na direção das amigas. Ele baixou a cabeça e evitou olhar para Gabriela.

Respirou fundo.

Estava arrependido, mas isso não bastava. Precisava que Ana o perdoasse.

Ele saiu do elevador, tocou a campainha e esperou. Quase um minuto depois, percebeu que alguém olhava pelo visor do olho mágico.

Ana abriu a porta e olhou para ele, com um misto de ódio e mágoa a transbordar dos olhos.

Ele suspirou, ansioso.

“Ana... Perdão...”, suplicou, envergonhado. “Perdão, Ana...”

Ela não respondeu. Ficou calada durante vários segundos. Depois começou a falar, baixinho.

“Bem que tinham me avisado que você era assim... sem vergonha. Eu que nunca acreditei.”

“Eu não sou assim, Ana, por isso que você nunca acreditou. Me perdoa, por favor.”

“Pedir desculpa depois, é fácil, não é?”

“Não está sendo fácil. Eu não queria te magoar...”

“Ah, não?”

“Eu estava bêbado, Ana... Me perdoa. Eu não te traí do jeito que você está pensando...”

“Tá bom. Não precisa perder tempo inventando história, tá? A Gabriela me contou tudo. A própria Lu contou pra ela. Pra você ver a cachorra com quem você foi se meter enquanto eu estava dormindo.”

“A Gabriela não gosta de mim, Ana, você sabe disso.”

“Ela é minha amiga. E bem que ela tinha me avisado, desde o começo... Ela sempre disse: quem dorme com cachorro, acorda com pulga. Não posso nem reclamar.”

“Eu te amo, Ana. Quero que você me perdoe. Não houve sentimento nenhum da minha parte, nada. Foi como se eu estivesse no cio. Ela me provocou, eu não resisti.”

“Cachorro!”

“Não fala assim, Ana. Eu te amo.”

“Cachorro.”

Ele olhou para ela, desolado, mas Ana não se comoveu.

Então baixou a cabeça, virou as costas e saiu andando, humilhado, com o rabo metido entre as pernas.