O Rei e o Jogo

Eu me considero um veterano em estádios. Na verdade, não sei como se avalia um especialista no assunto e qual seria sua relevância e importância para as pessoas ao meu redor, mas me atenho a isso enquanto assisto a uma partida e, principalmente, quando participo de discussões futebolísticas. Estufo o peito, contorço músculos do rosto em uma feição que deveria simular profundo conhecimento e arrogância, e disparo um convincente discurso de que a razão está do meu lado. Novamente, não sei a vantagem disso, já que não sou um profissional do esporte, mas me orgulho.

Sou um assíduo freqüentador deste palco de espetáculos esportivo há pouco mais de duas décadas. Parece prepotência alegar meu reinado sobre o assunto, sei disso, já que devem existir torcedores mais velhos e com mais ingressos guardados em seus santuários do que eu, mas sei que nenhum deles possui o apurado senso do que acontece dentro do campo. Para alguns, muitos e tantos, assistir a um jogo de futebol é de uma imprevisibilidade, e me perdoem o pleonasmo, imprevisível.

Embora em minha tirânica realeza reste ainda humildade para reconhecer que não prevejo resultados, assumindo aí o desconhecido, e talvez meu maior prazer em acompanhar apreensivo os 90 minutos de cada partida, me atenho ao fato de que nada do que acontece no gramado foge do meu conhecimento. O sempre irritado técnico e sua comissão, os vinte e dois jogadores e os afoitos reservas, o árbitro e seus auxiliares, fotógrafos e câmeras em constante movimento, gandulas e policias com seus ferozes animais amestrados em volta do campo; todos tão previsíveis quanto a esperança de cada torcedor para que seu time vença sempre.

E foi em um dia não tão comum desses, afinal, era final de campeonato, que adquiri um ingresso e me dirigi ao já memorizado caminho para o lugar que não me canso em sentar aos finais de semana. Após a claque mecânica, que devolve meu comprovante mastigado e aprovado para entrar, atravesso a catraca e integro-me à massa que circunda o colossal anel de concreto do estádio com o hino da equipe ecoando por todas as bocas e reverberando por entre a gasta arquitetura. O coração pulsa forte, e me sinto rodeado por fiéis súditos às vésperas de uma guerra.

Afastado do conglomerado desorganizado de torcedores, ainda que considerado organizado, eu encontro meu assento; meu trono. Recosto-me nele e aguardo o início do jogo com os olhos fixos no campo. Mas meu reino de segurança se abalou pela primeira vez logo após o apito inicial do juiz. Deixei-me distrair pelo apelativo grito de um vendedor ambulante de amendoins, ato que antecedeu a abordagem de um garoto que não deveria ultrapassar os sete anos, dois anos a mais do que eu quando vi minha primeira partida.

Eu nunca havia me incomodado com os acontecimentos que me rodeavam durante um jogo. Pois foi quando vi aquele pequeno ser voltar ao lado de um senhor, que percebi a possibilidade de um novo jogo se desenrolar próximo a mim. Mirei meus olhos nos dois e deixei que ambos narrassem o jogo com seus movimentos, cada um de uma forma diferente.

Tênis sujo com cadarços que não seriam amarrados pelo menos até que o árbitro sinalizasse o fim da partida, a camisa nova do time alguns números maior do que o menino deve usar, cabelo preto até a altura dos olhos e um pacote pela metade de amendoim. Ao seu lado, a figura que me parecia o avô do rapaz: chinelos vencidos pelo tempo, mas não pelo gosto do senhor, estalavam contra o chão a cada protesto dele, a desbotada camisa, incrivelmente pequena para o corpo daquele homem, mostrava a proeminente barriga a cada gesto brusco dos braços. Seus olhos, por trás das lentes bifocais, vigiavam alertas o desenrolar do jogo que, para mim, não era disputado mais nos gramados. E pressionado contra a orelha vermelha, perto do vasto bigode amarelado pela nicotina, o tagarela rádio portátil, tão velho quanto a energia elétrica, atropelava com emoção palavras em ininteligíveis comentários.

O primeiro tempo, ao meu ver, e considerando que o jogo concede o título de campeão nacional, foi uma batalha como poucas. Os cigarros queimados nos lábios do senhor e apagados sobre a sola do chinelo me contaram isso. Enquanto esganava seu pequeno rádio, eu sabia que o ataque adversário ameaçava a área de nosso goleiro. Ao virar minha atenção para o garoto, pude presenciar uma boa jogada de nossa equipe, pois o salgado aperitivo em suas mãos era compulsivamente consumido.

Soube de nosso gol quando a ponta do cigarro se prendeu à boquiaberta expressão do homem, enquanto esbugalhava as vistas de encontro às lentes. Acompanhei, ao mesmo tempo, a cabeça do menino fazer um longo arco acompanhando a bola e retirando os cabelos da frente para melhor visualizar a jogada. Não comemorei. Estava extasiado demais com minha descoberta de ver com os olhos dos outros, não como em uma narração televisiva, mas pela linguagem corporal, sincera e real.

Não sei quanto tempo se passou desde que a sombra engoliu meus espectadores-narradores. Em segundos, um universo de entusiasmo se corrompeu em posturas cabisbaixas após o empate. A decepção do jovem, amparada pelo aperto que o escudo bordado da camisa recebeu, me abateu também. Desconsolo maior foi quando vi seu avô depositar o velho companheiro movido à pilha, agora calado, no colo, assim que o segundo gol decretou o amargo resultado. Eu estava surdo a qualquer outro fato, aqueles dois eram o meu mundo aquela tarde, e me despedacei com eles. O apito final não apenas anunciou o fim do jogo, mas também as lágrimas juvenis.

Silencioso, o senhor retira seus óculos. Os olhos marejavam em um rio contido enquanto abraçava o neto. Via tudo como eles viviam. A perda do campeonato não me abalou tanto, mas aquela cena sim. O menino amarrou seus cadarços e, quando as luzes do estádio se apagaram, levando consigo as duas silhuetas cambaleantes para a saída, me dei conta da imprevisibilidade do futebol. De rei, em poucas horas me tornei escravo para sentir a grandeza de um mundo anexo ao que vivemos. Sorri, depois gargalhei. Muito tempo depois, me escoltaram para fora do estádio, e me imaginei sobre a proteção de meus fiéis guardas, em um reino completamente desconhecido e, me perdoem o pleonasmo, de uma imprevisibilidade imprevisível.

Ricardo Sorrenti
Enviado por Ricardo Sorrenti em 03/05/2007
Código do texto: T472917