Anos Verdes, Anos Negros


Conheci Beto na Universidade, no Rio, no final da década de 1960. Era uma pessoa fisicamente comum, em nada chamava a atenção. Exceto pelo olhar permanentemente irônico, cínico.
Estávamos matriculados em diversas matérias em comum, não éramos exatamente amigos.
Certo dia, João, um amigo, nos convidou para participar de uma reunião política de estudantes. Na época, essas reuniões eram expressamente proibidas. Fomos e, posteriormente, muitos de nós pagaria bastante caro...
A reunião não tinha grandes novidades. Protestos contra a ditadura militar, formas de luta, relação de companheiros desaparecidos, informações sobre a política em geral e estudantil. Mas, na realidade, o que mais nos atraía era exatamente o fato da reunião ser clandestina. A clandestinidade atrai as pessoas. Existe grande atração pelo proibido. Os tiranos enganam-se achando que pessoas os temem por criarem instrumentos que tornam coisas e pessoas proscritas. Os homens temem e amam ao mesmo tempo. Têm medo e atração pelo proibido, o clandestino, a proscrição. Na verdade, essa talvez seja a essência da liberdade.
Na saída da reunião, encontramos Márcia e Janete, colegas da faculdade. Fomos a um barzinho, onde bebemos cerveja, falamos de política e, como sempre, jogamos muita conversa fora. Beto e Janete ficaram no bar e parecia que ali começava um novo namoro. Levei Márcia até sua casa que ficava ali mesmo em Botafogo e peguei um ônibus para ir para casa, no subúrbio, como dizem os cariocas.
No dia seguinte, na faculdade, eu e a maior parte dos participantes da reunião fomos presos e levados a uma das dependências militares, creio que na Tijuca, mas não tenho certeza, pois fomos levados num furgão “civil”, fechado, sem janelas.
Fui interrogado diversas vezes durante a noite. Parece que já sabiam que eu não tinha informações que lhes interessassem. Mesmo assim, só me libertaram no dia seguinte. Antes perguntei pelos meus companheiros e como resposta recebi um tapa na cara. Fui jogado sem camisa na Praça Saens Peña. Entrei num taxi, onde o motorista desconfiado achou que eu estava bêbado, mas me levou para casa.
Ao chegar em casa, minha família estava apavorada. Beto não havia sido preso e comunicara o acontecido aos meus pais. Serenados os ânimos, era necessário saber dos amigos. Naquele dia não consegui sair de casa. Só faltaram trancar as portas. Muita chantagem. Família é fogo!
Quando voltei à universidade encontrei Beto num dos laboratórios encaminhando um de nossos trabalhos sobre mutações. Ele agia como se nada houvesse acontecido. Olhou, cumprimentou-me e continuou o trabalho.
- Tem notícias do pessoal? Perguntei alterado. Você parece que não está nem aí...
- Calma, relaxe. Em primeiro lugar, disse ironicamente, alguém tem de fazer os trabalhos. Ninguém mais aparece...Segundo, a maioria parece que já foi solta. Ficaram apenas alguns.
- Que alguns? Perguntei irritado.
- Sei lá, logo saberemos e vê se não atrapalha que eu ainda não terminei aqui. Ah, esqueci de dizer: a Janete ainda não apareceu.
- É com esta calma que você diz isto? Cacete vai ser insensível na p.q.p.
Ele deu de ombros e continuou o trabalho. Pegou a chave da porta e foi saindo. Passou a ignorar a minha presença.
- Sai que eu tenho que fechar o laboratório e entregar a chave.
Saí e fui atrás dele, danado da vida e, ao passarmos em frente ao gabinete do diretor, fomos chamados.
O diretor era um homem alto e careca. Fumava. Soltava mais fumaça do que muita chaminé. Sua sala estava sempre enfumaçada. Mandou que sentássemos e falou pausadamente:
- Senhores Fernando e Roberto eu estava à sua procura. Os senhores sabem que estamos passando tempos difíceis, há muita subversão e há muitos inocentes úteis. Provavelmente incluindo vocês. Não vou tolerar alunos meus envolvidos em baderna. Se continuarem metidos com quem não devem, eu providencio pessoalmente sua expulsão. Há mecanismo de exceção que me permite isso. Os senhores sabem muito bem e blá, blá, blá. Não me lembro nem da metade. Mas, demorou um bocado.
Uma semana após nossa prisão, Janete ainda não tinha sido solta. Procuramos um  parente oficial militar. Não adiantou. Ele desconversou, disse que era uma situação difícil, que aguardássemos. Tentaria ver o que estava acontecendo. Nada podendo prometer. Falou de novo dos inocentes úteis. Haja saco.
Procuramos um jornalista nosso amigo. Nada. Desconversou também. Comecei entrar em desespero. Janete continuava desaparecida.
Três semanas depois encontrei Janete. Estava abatida. Tinha um dos braços enfaixado. Estava acompanhada do Beto, no mesmo bar de Botafogo. Assim que os vi, fiquei furioso e falei aos berros:
- Janete, que bom te ver novamente. Muito obrigado por me avisar que foi solta. E eu preocupado. Sou mesmo um estúpido, um babaca completo.
Não responderam e saíram do bar me deixando falando sozinho. Também saí e fui andando em direção à praia.
- Nando, Nando. Era Márcia que vinha correndo atrás de mim.
- O que foi? Respondi ríspido.
- Nossa, calma! Você sabia que a Janete foi libertada?
- Soube agora. É por isto que estou danado da vida. Custava me avisar?
- Ela saiu da cadeia ontem. Levou uns safanões, muita pressão, foi fichada, mas saiu inteira. Mais ou menos. Algumas escoriações no corpo e na alma.
Que bela hora para filosofar, pensei. Márcia continuava falando “pelos cotovelos” como se dizia. A maior parte eu nem escutava. Duas coisas em me lembro: o João continua preso e Janete e Beto parece que vão morar juntos.
- O que? Foda-se, eles se merecem!
- Deixa de ser chato, cara. Eles se gostam. Você fica assim é por inveja e porque não gosta de ninguém.
Quanta sinceridade! Não gostei, mas era aparentemente verdade. Então ela beijou o meu rosto, sorriu e pegou-me pelo braço. Caminhamos pela praia até o amanhecer. Nunca mais a veria. Abandonou a faculdade. Sumiu. Não mandou mais notícias.
Anos após aquela noite, muito tenho refletido. Muita coisa mudou na vida de nós todos. Alguns nem vida mais tiveram.
João que vivia sonhando com um mudo mais justo e igualitário, presidindo reuniões e tentando contagiar-nos com seus sonhos, morreu naquela mesma época. Foi encontrado morto em sua cela. “Suicídio” afirmaram os órgãos de repressão. Absurdo!
Janete ficou grávida de Beto. Este convenceu-a a fazer um aborto. Canalha! Depois disso a moça sumiu, caiu na clandestinidade.
Beto abandonou o curso. Fez outra faculdade. Tornou-se um alto executivo de uma multinacional.  Casou-se com a filha de um dos ministros, não sei se teve filhos. Nunca mais o vi. Não faz falta!
Eu, terminei a faculdade, trabalhei um tempo com pesquisas, abandonei tudo passei a ganhar a vida como professor. Saí do Rio, fui para Belo Horizonte, Florianópolis e São Paulo. Voltei ao Rio. Casei-me duas vezes. Não tenho filhos. Desisti.
Hoje eu Fernando, Nando, sou apenas a sombra do que talvez pudesse ter sido. Alguém já disse que nós somos apenas a sombra daquilo que os outros querem que sejamos. Poderia ter feito tanta coisa, deixado de fazer outras...
Uma coisa importante daquela época jamais falei: Eu era apaixonado pela Janete. Acho que ela percebeu. Existe um momento que foi só nosso: após o aborto ela me procurou. Fomos ao mesmo bar e lá ela disse que estava indo para o Araguaia, onde havia um movimento guerrilheiro. Convidou-me para ir com ela.
- Vamos é pelo nosso povo. Está tudo esquematizado pela direção do Partido, muita gente já está lá. Além disso, a população vai ajudar....
Respondi o que me pareceu lógico no momento:
- Não vai dar certo. Vocês vão ser massacrados. Presos, com um pouco de sorte. Na hora “h” o povo não ajuda coisa nenhuma. Além disso, os caras da repressão já devem ter percebido a movimentação, não são burros. Estava exaltado. Falava atropelando as palavras.
Janete me olhou entre decepcionada e penalizada e disse:
- Está bem, não vá. Depois você se arrepende. Vai ter a vida toda para isso. Tchau.
Nunca mais tive notícias suas. Foi dada como desaparecida. Morreu. De certa forma todos morremos. A vida tornou-se um grande Araguaia de lembranças mal resolvidas. João, Beto, Márcia, eu e outros amigos morremos de certa forma.
Aqueles eram, talvez, anos verdes, já que éramos todos jovens sonhadores. Mas não eram dourados, eram negros...

Rio, Dezembro de 1983.
Gerson Carvalho
Enviado por Gerson Carvalho em 16/03/2014
Reeditado em 31/10/2020
Código do texto: T4731265
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