Maldade

Maldade, maldade mesmo fizeram foi com o Valtinho, coitado, não gosto nem de lembrar. Logo com o Valtinho, que era uma espécie assim de ídolo de todos nós, garotos lá da rua. Valtinho era bom de bola, sabia driblar, dava lençóis seguidos, de um lado pro outro, gostava de passar a bola entre as pernas dos beques que tentavam marcá-lo no campinho, só pra humilhar; era bom de briga também, defendia os mais fracos, protegia a gente, a molecada que o seguia como um verdadeiro messias, qualquer que fosse a situação; e, como se não bastasse isso tudo, o danado era ainda muito boa pinta, parecia artista de cinema, usava o cabelão liso escorrido até os ombros, como um véu, quando isso era moda, andava de peito estufado para frente, mas não inchado por musculação, era atitude mesmo, coragem, atrevimento; os olhos eram feito duas bolas de gude, brilhantes, meio verdes, meio cinza, que nem gato; era o xodó das mulheres todas da vizinhança, desde as meninas pequenas, de seis, oito, dez anos, a quem pegava no colo e fazia acreditar que ia esperar que crescessem para poder namorá-las, até de dona Albertina, na lonjura inalcançável dos seus 78 anos, que remoçava e recuperava os modos que devia ter tido quando moça, sempre que recebia a tenção gentil do Valtinho.

Ah! O Valtinho não merecia o que fizeram com ele, não merecia, não. Ele era amigo de todo mundo, amigo dos amigos, franco, de falar olhando no olho, mas incapaz de ofender; conversador, bom de papo, tinha sempre um cumprimento, um afago pra quem quer que fosse; não precisava ser ninguém ilustre nem rico, como muitos aí que viviam bajulando ele, atrás de um instantezinho de brilho; podia ser até o Ceará, o bêbado chato do botequim da esquina, ou então o velho seu Américo, do 53, que já estava ranzinza e implicava com todo mundo. Ele tinha sempre uma palavra de atenção, fosse pra falar do páreo de segunda, com o Ceará, ou das raras vitórias do time das camisas rubras, paixão e glória que tinha dado o nome ao seu Américo e era único assunto que ainda trazia um sorriso ao rosto do velho.

Um cara assim não merecia o que fizeram com ele.

Se o Valtinho tinha um defeito, porque tinha, todo mundo tem, o dele era de ser mulherengo. Era o que a gente ouvia o pessoal mais velho dizer. A turma dava risada das histórias que o Valtinho contava na esquina, mas depois que ele ia embora, quando parava o carro que ele estava esperando, sempre com uma mulher espetacular ao volante, depois que o carro partia, com uma expressão esquisita que tanto podia ser de preocupação quanto de inveja, ou vai ver as duas coisas, o pessoal comentava lá entre eles que o Valtinho ainda ia acabar se dando mal.

Mas pra gente, que era moleque, isso não era defeito, era qualidade. Onde já se viu ter um monte de garotas andando atrás ser defeito? Ô! O sonho de todos nós era justamente esse, ser igual ao Valtinho, ter uma penca de namoradas, todas bonitas, cheirosas, elegantes, cada uma mais gostosa que a outra, e ganhar um monte de presentes de todas elas, um presente mais caro que o outro, roupas finas, perfumes, sapato de couro, relógio, cordão de ouro, tudo, igual o Valtinho, isso era o que a gente queria.

O fuxico dos mais velhos era sempre feito em voz baixa, mas não era por causa da gente, que ficava em volta batendo bola e tentando escutar alguma coisa. O segredo era pros outros. Então daquela vez a gente ouviu a conversa e conseguiu descobrir o defeito do Valtinho qual era. O defeito dele era gostar de sair com mulher casada.

Como as bolas que ele enfiava por debaixo das pernas dos adversários, só pra desmoralizar; como os lençóis pra frente e pra trás, que muitas vezes mais atrasavam o jogo do que resultavam em gol; com as mulheres também, o Valtinho escolhia sempre o caminho mais difícil. As casadas. A recompensa podia ser igual àquela dos golaços que ele tantas vezes fazia no campinho. Para ele não serviam as garotas disponíveis, que ele também papava, mas sem a mesma satisfação. Para ele não bastava somente a rede estufada, o gol puro e simples, era preciso mais, era preciso deixar pelo menos uns dois adversários batidos, humilhados pelo drible desmoralizante. Da mesma forma, não bastava também a mulher ser conquistada somente pelo seu charme sedutor, sua lábia irresistível, sua bela figura de artista de cinema, fosse ela, a mulher, a mais linda que fosse, era necessário mais, era necessário o prazer do drible desconcertante no marcador, ou seja, a humilhação de um marido traído.

Naquela vez, quando o Valtinho saltou daquele carro, lá na nossa esquina, alguém que estava oculto pelas sombras da noite, só esperando por ele, saiu do breu e foi andando na direção dele. Antes que o Valtinho percebesse, devia estar distraído, ouvindo ainda os gemidos da garota ressoando em seus ouvidos, antes que ele tivesse tempo de fazer uma ginga, de jogar uma pernada certeira no sujeito, entrou um pelotaço de chumbo quente bem no peito dele, junto do coração. Um só, e bastou. O Valtinho caiu pra trás com o impacto da bala, ficou encostado no muro do 37, os olhos de gato dele sem o menor viço, sem nem mais uma luzinha sequer; nos lábios acostumados a beijar as melhores mulheres do mundo ficou gravado um riso irônico, o mesmo ar de deboche que ele costumava fazer depois que driblava meio time, no campinho, e uma cacetada impiedosa o jogava no chão antes que pudesse fazer o gol; como se, naquela hora ali, ele soubesse que tinha sido assassinado por um corno qualquer; havia naquele sorriso dele o mesmo sinal de um gozo particular, coisa que nem a violência dos adversários conseguia conter, porque ele sabia que, mesmo abatido por uma falta, como naquele instante por uma bala, a lembrança do come seco e desmoralizante no oponente desesperado, como também a história das trepadas alucinantes com a mulher casada, permaneciam ambas na memória de todos como uma verdadeira e definitiva sentença.

Mas maldade, maldade mesmo foi o que aconteceu depois.

Após o do tiro, o assassino fugiu. Era madrugada, a rua estava deserta. Alguns vizinhos chegaram à janela, com cuidado, para espiar, mas ninguém viu o Valtinho no escuro, caído rente ao muro do 37. O corpo dele, que tanta moça daria de tudo pra abraçar, ficou lá até de manhã, sozinho, sem nem uma vela, sem ninguém perto pra chorar. De manhã, quando o Pereira, o porteiro do 41, chegou à portaria do prédio, ele viu um corpo nu de homem largado na calçada e então chamou a polícia. Num instante chegaram juntos a viatura policial e os repórteres. Fizeram perguntas, bateram fotos. E o Valtinho lá, completamente nu, o corpo remexido pelos ladrões, exposto a curiosidade de todo mundo. Tinham roubado os sapatos de couro dele, o relógio, o cordão de ouro, as calças bem cortadas que ele estava usando, até a camisa levaram, apesar da possível marca do tiro, se é que o Valtinho não estava com ela aberta, exibindo o peito cabeludo, como ele sempre gostava de fazer; nem a cueca sobrou, o que levantou suspeita, do roubo, não do crime, sobre um certo Hamíltom, um biscateiro, camelô, de quem diziam ser capaz de vender até cueca usada, embora, por outro lado, não faltassem moças que entre elas, aos cochichos, afirmassem que o Valtinho não costumava fazer uso de tal peça.

No dia seguinte, a tragédia que aconteceu com o nosso ídolo, cuja fama de craque, de valente e de namorador era conhecida até por quem nunca o tinha visto, foi manchete de jornal barato: MORREU DE BUNDA PRA LUA.

Ah! O Valtinho não merecia um epitáfio desses.